A mãe que fui/sou; a doula que quero ser

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Eu tenho uma confissão a fazer: este post me custou uma noite de sono e uma sessão de análise. Mas, calma, não estou jogando isso na sua conta, cara leitora (ou leitor): na verdade, eu quero mesmo é, antes de tudo, agradecer por essa oportunidade.

Mas por que tanta ansiedade?!

[sou uma pessoa bem calma, eu juro!]
Porque nesse universo lindo e fértil, cheio de experiências de transformação e renascimentos, a minha é uma história com a marca da tragédia, e é difícil pra caramba sentar para escrever uma história triste, especialmente sabendo que envolve o maior medo de qualquer pessoa que se propõe a ter um filho.

Mas vamos lá. [Respirando fundo] Em 2015, às vésperas da minha DPP (data provável de parto), minha gravidez (desejada, planejada e muito bem acompanhada por uma equipe multidisciplinar) terminou em um óbito fetal. Naquele dia, acordei em pânico, porque o Martin não havia se mexido desde a manhã do dia anterior. Fui na médica, fiz a ultra e eis que fui arremessada naquele universo paralelo em que nada parece fazer muito sentido, mas do qual não se tem retorno. Meu filho amado estava morto e com ele anos de sonhos, expectativas e planos.

O parto, que eu quis tanto viver, eu tive: humanizado, com a enfermeira obstetra e a obstetra que escolhi, com minhas duas doulas (sim, sou dessas!), na banqueta. Mas todo o resto ficou guardado dentro de mim, não pôde ser parido. Foi um luto (é ainda), mas também foi um puerpério, onde precisei mergulhar em águas profundas e doídas para redescobrir quem eu era.

Gif de uma mulher grávida enlutada
O luto da perda gestacional, ilustrado por Brunna Mancuso para TAB Uol

E quem sou eu, afinal?

[Você continua aí? Espero que sim, porque a parte ruim já passou, prometo]
Eu faço parte do infeliz grupo de 27,808 mulheres brasileiras que, naquele mesmo ano, sofreram uma perda gestacional tardia, o que representa 8,6 em cada 1000 nascimentos (ou 0,86%). Para usar uma linguagem mais poética: sou mãe de um anjo. Mas apesar do meu filho ser o grande amor da minha vida, sua morte não me define.

A verdade é que a minha paixão pela humanização é mais antiga. Talvez tenha brotado do parto de um bezerro que eu, menina urbana que vivia com a cabeça nos livros, presenciei, encantada, numa fazenda durante as férias escolares. Foi nutrida pelo livro da antropóloga Emily Martin, A mulher no corpo, onde aprendi sobre violência obstétrica e sobre como o machismo informa a medicina e até mesmo a ciência. (Foi a primeira vez que uma obra acadêmica me tocou de verdade, me fez chorar de raiva)

Em seguida, vieram uma série de eventos que, sem eu saber na época, contribuíram para que aquela semente de interesse e curiosidade brotasse, crescesse e ganhasse forma de árvore: as amigas que não pariram, as amigas (em geral ativistas) que pariram, horas e horas de leituras e conversas sobre o tema, congressos, ativismo, meu antigo blog, meus anos de infertilidade, minha gestação, meu parto, cursos de bem carregar de amamentação e, enfim, de doula.

chá de bênçãos
Eu e a minha doula Paula Inara, no chá de bênçãos dela em 2016.
Foto: Maíra Suarez Fotografia

O que significa ser doula para mim?

Como já disse, tive duas doulas. Ambas foram essenciais na minha gestação, parto e puerpério/ luto. Elas representavam duas forças femininas que eu sempre busquei ter comigo ao longo da vida, mas com as quais no parto eu sabia que não poderia contar: minha melhor amiga/ irmã e a minha mãe (acabou que a minha mãe estava comigo no parto, e me ajudou muito, mas no meu planejamento ela não participaria, por motivos que não cabem elaborar neste momento).

A amiga/ a irmã: para me ajudar a pensar, me escutar, me dar ideais, segurar minha mão, estar junto, torcer. A mãe: me trazer conforto, me amparar, ser o meu porto seguro, acreditar.

Duas amigas grávidas
Irmãs de barriga: eu, com Martin, e a Gaabriela, grávida da Flor. Esse era o vestido que eu estava usando quando descobri o óbito. Só consegui vesti-lo de novo 3 anos depois.
Foto de Mari Hart – Photo & Soul.

Agora que eu também sou doula, me enxergo simbolicamente nesses papéis: quero estar junto, fornecer amparo, escuta, informações embasadas, respeito e uma presença de irmã/amiga/ mãe (porque talvez as “verdadeiras” não estejam aptas a atuar bem nesse contexto). Chego com a cabeça cheia de informação e preparo, as mãos prontas para segurar, massagear, apoiar, os pés firmes na crença de que a mulher é capaz de parir e o coração cheio de afeto, convicção e amor de mãe. Quem sabe não é um jeito de parir velhos sonhos que continuam vivos dentro de mim?

[obrigada, de novo, por me ouvir. Espero um dia fazer o mesmo por você]
Se quiser saber mais ou participar de algum evento organizado por mim, preencha o formulário e vamos trocando!

Referências bibliográficas

Stillbirth rates in 20 countries in Latin America: an ecological study
https://obgyn.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/1471-0528.15294

Ending preventable stillbirths
http://www.thelancet.com/pb/assets/raw/Lancet/stories/series/stillbirths2016-exec-summ.pdf

A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução, Emily Martin (Editora Garamond)

“Alone,  I wouldn’t have known what to do”: a qualitative study on social support during labor and delivery in Mexico
https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S027795369800077X

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17 respostas para “A mãe que fui/sou; a doula que quero ser”

    1. Obrigada! Sabia que o seu foi uma das minhas referências? Estou adorando seus textos 🙂 Beijo!

  1. Sempre me emociono lendo seu relato mas sinto hoje nesse texto uma mulher mais firme, mais segura e mais forte do que a mulher que conheci naquela salinha do curso em 2017! Tenho grande admiração por você e sua garra! Estamos juntas no bem carregar dos bebês e de uma a outra! Um abraço bem apertado! 💜💙

    1. Tomara que em 2019 continuemos nos vendo muito, Patrícia. Aprendo muito com você e adoro te ter por perto 🙂

  2. Tenho apenas uma unica palavra para você: Obrigada <3 Pela honra de estar ao seu lado, por ser minha amiga, por ser parte da minha vida e me permitir fazer parte da sua. Obrigada, Obrigada, Obrigada <3

    1. Você é tão maravilhosa que já me sinto mais culpada por ter te colocado no difícil lugar de ter que doular uma mãe com feto morto. Te amo, amiga.

  3. Mais um depoimento tão sensível, dessa vez num formato diferente. Que lindo, Cla. Obrigada por compartilhar tudo isso. Deu até vontade de engravidar de novo e ter você como doula… Que sorte a dessas mulheres que terão essa oportunidade!

    1. Obrigada pelo carinho, querida. Tá faltando uma menininha aí hahaha 😛 Seria uma enorme honra estar contigo nesse momento. Afinal, gestamos os primogênitos juntas <3 Beijo grande!

  4. Clarissa, sigo te acompanhando aqui! Que 2019 seja um ano de encontros e reencontros, conquistas e resistência!

  5. Um depoimento tão sensível e importante. Your story will always be with me. I look forward to hearing more of your experiences in this blog xx

  6. Cla como sempre você me emocionou. Te conheço desde que somos crianças e sempre soube do seu dom de escrever. Vejo que as experiências que viveu tornaram você essa mulher forte e com muita experiência e amor para compartilhar. Desejo que essa nova etapa da sua vida te traga muita alegria e sucesso!

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