Porque gostamos do dia do ultrassom

“Será que só eu gosto tanto assim do dia de fazer ultrassom?”

Só você,
cineasta de bebês
conectada mor com seu bebê
tietê de bebê na televisão
barriga transparente

É muito provável que você já tenha dito essa frase enquanto grávida, e também que já tenha ouvido ela de alguma mulher por aí.
E a resposta parece ser bem simples, não é mesmo?

Gostamos do dia do ultrassom porque vemos o nosso bebê!

Tenho uma amiga que, enquanto grávida, dizia que gostaria que a barriga fosse transparente para ver o bebê ali o tempo todo e saber que ele estava bem. Mas vamos pensar mais a fundo sobre esse desejo e necessidade que temos em vermos o bebê.

O que nos leva a confiar tanto nessa tecnologia? Porque ficamos ansiosas e inseguras quando não podemos ver o nosso bebê? O que o ultrassom carrega para a gestação?

Ultrassom segundo a Organização Mundial da Saúde

Autoria própria

Foi por volta da década de 60 que o primeiro ultrassom obstétrico foi realizado. Primeiro para conferir as anomalias fetais, e mais adiante para confirmar a gravidez. No Brasil, foi na década de 70 que o exame começou a ser utilizado de forma rotineira nos acompanhamentos pré-natais, e pouco a pouco trazendo a ideia de “aproximação” da mãe com o bebê.

Para entender sobre as técnicas, riscos e benefícios do Ultrassom mais detalhadamente você pode acessar a esse texto.

E o que apresento abaixo é uma reflexão. Algo para nos levar a pensar, porque gostamos tanto do ultrassom, aquela imagem cinza e meio fosca, que nos proporciona prazer e ansiedade?

Ver para crer

Por volta de 1990 na América do Norte e na Europa, foram feitos estudos antropológicos sobre as práticas e significados da expansão acelerada do uso do ultrassom na gravidez. Colocando uma visão política e contextualizada nessas imagens.

Um dos melhores estudos já feitos sobre o uso do ultrassom obstétrico no Brasil na atualidade foi pela antropóloga Lilian Krakowski Chazan. “Meio Quilo de Gente” fala justamente dessa aproximação (ou seria afastamento?) que o exame de imagem trouxe entre mãe e bebê. Problematizando o que chamamos de natural no contexto dos procedimentos realizados durante a gestação.

Sabemos que a história do parto é carregada com o saber empírico feminino sobre gestação e nascimentos. Que mesmo com a pouca tecnologia, as mulheres tinham seus filhos em partos domiciliares rodeadas e cuidadas por outras mulheres. Quando gestações de riscos, muitas vezes, o bebê morria para que a mulher sobrevivesse. E é claro que o avanço da tecnologia obstétrica salvou e ainda salva muitas vidas.

Porém, devemos trazer à reflexão o que essa tecnologia, usada de forma indiscriminada, nos tirou.

Acervo Wikipedia

É comum que muitas mulheres relatem só terem se sentido confiantes e seguras em relação ao seu bebê após visualizá-lo ou escutá-lo através das imagens do exame de ultrassom.

Antes, não muito distante, as mulheres viviam os nove meses de gestação sem saberem sobre o sexo do bebê. Hoje não passar por um chá revelação é fora de cogitação. E mesmo quando querem deixar para saber se é menino ou menina no momento do nascimento, são pressionadas por familiares e pela sociedade afora.

Com isso passamos por duas questões relacionadas a ultrassonografia. A primeira é a de que depositamos nossa segurança e confiança nos exames médicos de rotina. E a segunda é de que, mesmo que inconscientemente, nós mesmas começamos a colocar o feto ainda em formação como indivíduo, e fazemos a separação gestante e bebê como dois seres.

Trazendo Bauman (2008) para a reflexão podemos dizer que vivemos em uma sociedade definida pelo sentimento de medo e pela individualidade. Formando, então, uma modernidade marcada pelo narcisismo e pela incapacidade de enfrentar as angústias. Uma sociedade imagética e que necessita de relações de poder para se sentir segura.

E o que isso tem a ver com os exames de ultrassom?

Precisamos ver para crer!

o quê??

Ver que o bebê está ali, e com um respaldo médico, acreditar que ele está bem!

Ainda podemos trazer o refúgio do consumo atribuído a sociedade atual. É preciso saber, muitas vezes, antes mesmo de ser possível identificar no ultrassom, o sexo do bebê para poder nomeá-lo. E então começarmos a comprar tudo o que diz respeito a esse indivíduo que está sendo formado, mas que já tem uma ideia de pessoa significada.

Assim como a cultura da cesárea que se coloca em uma sociedade onde tudo deve ser rápido e prático, também faz-se a ideia do ultrassom na gestação. É preciso que seja feito com frequência porque só assim nos sentimos confiantes, próximas, e seguras em relação ao nosso bebê.

A mulher perde em perceber e reconhecer o seu corpo, suas próprias transformações.

O que mais aproxima as mulheres de seus bebês durante a gravidez ainda é a percepção dos movimentos do feto no útero. Porém é apenas após o primeiro exame de ultrassonografia que a maioria se reconhece grávida. É quando chamam de “cair a ficha”.

É comum que se imagine um bebê. Que se crie suas feições. Mas é somente a partir do exame de imagem que confirmamos o bebê imaginário. Mesmo que ele não apresente nenhuma das feições criadas em mente, colocamos antes mesmo que ele venha ao mundo, uma carga de quem será e com quem se parece.

Perdemos uma conexão intimista e individualizada com o nosso bebê.

A imagem se torna, tanto para medicina como para o processo da gravidez, uma forma de aprender e compreender os fatores biológicos. E esse modo de colocar a visão como técnica de ensino traz novamente o conceito de hierarquia entre médico – paciente, e coloca a gestação e parto na caixinha da patologia e medicalização.

Ou seja, somente o médico tem o conhecimento do exame de imagem, e só ele pode dizer que está tudo bem. Tirando, mais uma vez, o protagonismo da mulher na gestação e parto.

A conexão mãe-bebê

Entendemos então que o consumo excessivo da ultrassonografia é reflexo da sociedade que estamos inseridos e construindo. Porém devemos reconhecer, ao mesmo tempo, que reforçamos essa ideia de medicalização que foi colocada na gravidez, parto e nascimento, quando ansiamos pelos exames de imagem apenas pelo prazer em ver e ouvir o bebê.

Pensando mais adiante do porque agimos e construímos culturalmente a relação corpo x doença. Chazan cita Foucault (1981) em um enfoque biopolítico, colocando o exercício de poder voltados às relações disciplinadas que existem nos discursos, relações e práticas sociais. O estado é responsável pela saúde do indivíduo, portanto a medicina passa a ocupar um grande espaço de poder.

Acervo Pixabay

“Dar á luz é uma aventura pessoal. Diante das normas consensuais da medicina, não renuncie a sua autonomia; se sua gravidez não apresenta sinais de patologia, não se deixe impressionar com o aparato do “progresso”, sempre pronto a interferir. Telas de ultrassonografia, uniformes branco, luvas de látex, perfusões, seringas…”

Esse é um relato citado no livro “Quando o Corpo Conscente” de Marie Bertherat, Thérése Bertherat e Paule Brung (1997). É um diário de Marie contando sobre os nove meses de gravidez e tudo o que experienciou em seu corpo nesse período. Como diz Marie, dar a luz é uma aventura pessoal. Você sabe, entende, e sente no seu corpo um novo corpo se formando.

Enquanto muitos estão trabalhando por várias horas no dia, você está gestando outro ser. A mulher grávida não é inútil e cansada, ela é a força nutriz de um ser que será do mundo. Mas, por enquanto, são um único ser.

Digo isso porque é muito importante que a mulher entenda sobre a sua função nesse momento e saiba do valor que tens. Que olhe para si e se perceba. Pois diante da sociedade que vivemos, do individualismo moderno e das relações de poder, torna-se muito fácil entregar-se às autoridades.

Bertherat e Brung (1997) dizem justamente sobre o quanto é mais fácil colocar toda a nossa confiança a quem supostamente sabe, mais do que nós, o que está acontecendo conosco. No caso, toda a medicina e os procedimentos técnicos atribuídos a gestação e parto.

Antes de realizarmos qualquer exame de ultrassonografia temos um bebê imaginado, e a medicina vêm para mostrar o “real”. É mostrar o corpo de dentro para fora, trazer de fato quem é aquele bebê, o separando da mãe.

Será que se estivéssemos realmente conectadas com nossos bebês, saberíamos o que poderia estar errado?

É importante pensarmos que, diante de toda essa modernidade narcísica e consumista, tenhamos nos perdido de quem somos, o que somos, e o que sentimos.

As autoras ainda dizem contrário à justificativa de realizar exames de ultrassons para tranquilizar as mães. Debatendo e relatando a relação médico – paciente que, muitas vezes, fazem o veredicto dos exames com nomes difíceis e nada populares, com frases curtas e pouco precisas. Atitudes que só distanciam a futura mãe da tranquilidade.

Então é certo pensarmos que a ultrassonografia deveria servir para detectar anomalias porém, ela se generalizou de tal modo, que se tornou a resposta para todas as perguntas.

Será?

Ultrassom Natural: a pintura na barriga

Foto: Francielli Bertoni

É provável que você já tenha visto fotos ou ouvido falar sobre a pintura na barriga durante a gravidez. Essa técnica, que hoje está muito utilizada, deve ser vista não apenas como uma pintura e forma de fazer fotografias diferentes durante a gestação.

A pintura na barriga, chamada  em pesquisa como “Arte da Pintura do Ventre Materno” representa um fenômeno artístico com fins terapêuticos.
A arte se apresenta como base do ser humano desde a pré-história. É através dela que se produz e se provoca aspectos psíquicos no receptor.

A pintura gestacional, como atividade artística, é um modo das pessoas entrarem em relação com o universo e consigo mesmas, colocando-se em equilíbrio com o meio externo.

Assim como a ultrassonografia é a visualização do bebê que antes era imaginário e se torna real, a arte no ventre é a externalização e expressão do que está interno. É trazer o imaginário materno para cores, também o tornando visível, tocável, conhecido.

Materializando-o na pele, assim como deve ser o nascimento.
É a vida uterina para o meio estético e não tecnológico.

O termo ultrassom natural foi criado pela parteira mexicana Naolí Vinaver em um momento histórico marcado pelo intervencionismo e pelo uso excessivo da tecnologia no ciclo gravídico. A intenção foi mostrar que, por meio da arte, pode-se revelar o tamanho aproximado e a posição precisa do feto, assim como o ultrassom obstétrico. Naoli foi a pioneira na implantação da pintura em gestantes no mundo.

A pintura gestacional, mesmo que traga os mesmos propósitos do ultrassom convencional de tornar o bebê visível e reconhecido como indivíduo, promove a vinculação pré-natal. Trazendo sentimentos e emoções positivas para as mães, como alegria e surpresa, e também negativas, relacionadas à gatilhos emocionais que podem contribuir para um acesso às dores e desconfortos que poderiam vir a atrapalhar o seu processo de parto e nascimento.

Ou seja, a pintura na barriga estimula a imaginação das gestantes em relação ao feto e consequentemente, provoca sentimentos de aproximação e conexão com ele.

Assim como no ultrassom, que ondas são transmitidas para que se reflita uma imagem, na pintura gestacional os toques do pincel são métodos sensitivos para o bebê, e nada invasivos em relação as ondas magnéticas da tecnologia.

É claro que a prática não identifica as anomalias e tempo gestacional porém, através da arte, desperta sentimentos e emoções que dificilmente a mulher teria acesso com a pressa e desconexão do dia a dia.

“Se preparar é se encher por dentro, de segurança, de saber que toda mulher pode parir. A gente tem muito o que aprender com as mulheres do campo porque elas têm contato muito direto com o seu próprio ser, com a natureza. Elas não duvidam, quando engravidam, se elas vão poder parir ou não. A cabeça não atrapalha. A cabeça da mulher moderna atrapalha muito. Precisamos nos limpar desses contaminantes mentais, e limpar essa coisa social de: “a mulher não vai parir porque mulher moderna já não sabe parir mais”,  isso não é verdade. Nós mulheres sabemos parir. Nós mulheres gostamos de parir.” – Naolí Vinaver em O Renascimento do Parto

Essa afirmação da parteira mexicana Naolí Vínaver também pode ser analisada de acordo com o desejo da ultrassonografia durante a gravidez. É importante entendermos que estamos contaminadas pelas ideias e direcionamentos de nossa sociedade atual. E que, durante uma gestação, precisamos voltar a nós e nossos corpos. Sabermos, confiarmos, acreditarmos em nós mesmas e nossas capacidades.

Importante ressaltar que não pretendo com o presente artigo desvalorizar as propriedades e benefícios de um ultrassom obstétrico. Apenas refletir sobre a nossa frequente necessidade em relação ao exame e à todas as intervenções que podem vir a ser feitas durante a gestação. Colocando nossos corpos e nossa mente como incapazes e suspeitos.

Foto: Thalita Calefe

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Biografia

Meio Quilo de Gente – um estudo antropológico sobre ultrassom obstétrico

A imag-ética do indivíduo

A representação social da arte da pintura do ventre materno para gestantes

A história da ultrassonografia no Brasil e no mundo

Recomendações da OMS sobre atendimento pré-natal para uma experiência gestacional positiva: exame de ultrassonografia

A questão da diferença na sociedade contemporânea: reflexões a partir de  Zygmunt Bauman

Arte da pintura do ventre materno: termo, conceito e técnica

BERTHERAT, M; BERTHERAT, T; BRUNG, P. Quando o Corpo Conscente. São Paulo, 1997

 

2 respostas para “Porque gostamos do dia do ultrassom”

  1. Eu faço ultrassom a cada 30 dias nas minhas consultas. Sabe o que faço no restante do tempo? Me conecto com meu corpo e com meu bebê. Faço yoga, meditação, converso com o bebê dentro da barriga. Não é um exame que vai alterar minha forma de interagir com meu neném.
    Eu me sinto muito segura com minha médica humanizada, com minha doula e principalmente comigo mesma.
    E eu fico muito muito feliz de vê-lo pela tela também. Uma experiência não exclui ou diminui a outra.

    1. Olá Ana,
      obrigada pela sua observação! É exatamente isso, uma experiência não exclui a outra. São duas formas de se conectar.
      O texto é apenas uma reflexão sobre gostarmos tanto desse dia. Querendo ou não, o ultrassom é um exame que foi criado para detectar anomalias fetais e gestacionais, mas acabou sendo usado de forma rotineira.

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