Uma mulher está em trabalho de parto, sob o atendimento de um sistema obstétrico que, na época, utilizava medicamentos fortes para alívio da dor. Ela recebe anestesia geral e fica inconsciente por horas, acordando somente a tempo de ver a cabeça do bebê coroando. Assustada, chama as enfermeiras, que jogam cartas tranquilamente em uma mesa próxima ao leito. O bebê nasce sem qualquer necessidade de a mãe “fazer força na hora certa”.
Ao ler isso, com certeza o nosso primeiro pensamento deve ser “MEU DEUS! Como assim? Isso é impossível!”. Essa história ocorrida há mais de 20 anos, também intrigou a midwife (parteira) Nancy Tatje-Broussard. Ela ficou impressionada com o relato de parto da amiga e começou a estudar mais sobre essa dúvida comum entre gestantes em todo mundo: Afinal, existe hora certa para fazer força?
‘Nosso amigo, o útero’
Antes, precisamos entender que o útero é um músculo. Quem frequenta uma academia, por exemplo, requer tempo e dedicação para chegar ao resultado almejado. São dias, meses e até anos para ganhar massa muscular e resistência de forma saudável. Mas não podemos exercitar o útero com ajuda de um personal trainer. A contração do útero é formada nele, sem depender de estímulo nervoso. É involuntário; não temos controle.
Na gravidez, o útero expande para abrigar o bebê, que avisa o corpo da mãe que está pronto para nascer. Ou seja, quando seu sistema respiratório está 100% pronto/maduro para funcionar fora do ambiente uterino. Dado o sinal, as contrações trabalham como ondas, levando o bebê em direção à “saída”. Antes de passar pelo processo de trabalho de parto, inclusive, ele “treina” sozinho.
No último trimestre, a barriga pode enrijecer (ficar dura) por alguns segundos, em diferentes momentos do dia. São as contrações de treinamento. Algumas podem passar despercebidas pela mulher e não devem ser motivos de alarme. Entretanto, não devem doer – em caso de incômodo, deve-se descartar a possibilidade de infecção urinária ou outra intercorrência que possa resultar em um nascimento prematuro.
‘Flanelinhas de parto’
Agora que sabemos que o útero é um músculo que trabalha sozinho, sem que tenhamos controle sobre ele, devemos nos perguntar se “empurrar” faz diferença na celeridade do nascimento. É comum médicos e enfermeiros praticarem a chamada “Manobra de Valsalva”, que consiste em comandar a mulher a fazer força, com frases do tipo “Faz força de cocô… Continua! Não para, não para… Fooorça!”. Também vemos isso em filmes e novelas.
Em seu artigo “Segunda etapa do trabalho de parto: você não precisa empurrar”, Nancy Tatje-Broussard revela que incentivar as mães a “fazer força” foi popularizado na década de 1920. Na época, acreditava-se que ao completar os 10 centímetros de dilatação necessários para a passagem do bebê, o nascimento deveria ser o mais rápido possível. Os profissionais que atuavam na obstetrícia acreditavam que um expulsivo prolongado seria arriscado.
“O uso generalizado de episiotomia, fórceps e anestesia geral foi promovido para evitar o transporte insuficiente de oxigênio para o bebê, dano cerebral fetal e asfixia. O prolongamento da respiração e esforço também foi encorajado a acelerar a passagem do bebê através do canal de parto. Ao mesmo tempo, as mães foram mesmo incentivadas a começar a pressionar o início do trabalho.”
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Mas faz alguma diferença?
Seis décadas depois, as evidências científicas mostraram que a segunda etapa do trabalho não era perigosa para o bebê. E, de acordo com a pesquisa “As técnicas de empurrar materna durante o trabalho de parto afetam resultados obstétricos ou neonatais?”, publicada na revista científica francesa “Ginecologia Obstetrícia e Fertilidade”, empurrar não torna o processo mais rápido. Concluiu-se que:
“A baixa qualidade metodológica dos estudos e as diferenças entre os protocolos não justificam uma recomendação de uma determinada técnica de empurrar. Novos estudos parecem necessários para estudar resultados com cada uma dessas técnicas.” Volume 44, Edição 10, outubro de 2016, Páginas 578-583
Já o artigo “Um ensaio randomizado de empurrão materno treinado versus não incentivado durante a segunda etapa do trabalho de parto”, publicado pela Revista Científica Americana de Ginecologia e Obstetrícia afirma que “embora associado a um segundo estágio ligeiramente mais curto, o empurrão materno treinado não confere nenhuma outra vantagem.” (Volume 194, Edição 1, Janueiro de 2006, Páginas 10-13)
Riscos e sequelas
Apesar de os pesquisadores não chegarem à conclusão concreta se a mãe tentar empurrar o bebê – com ou sem orientação – teria alguma diferença efetiva nos momentos finais do trabalho de parto, há riscos. Na Escola de Enfermagem da Universidade de Wyoming (EUA), Susan McKay escreveu o trabalho “Humanizando o parto em uma sociedade tecnológica”, citado por diferentes publicações especializadas. Nele, ela enfatiza:
“Exortar a mãe a empurrar cada vez mais pode, de fato, piorar a situação, pois a cabeça do bebê e o cordão umbilical são comprimidos através do intenso esforço da mãe, levando a desacelerações de [batidas do coração] e hipoxia fetal [privação de oxigênio].” Página 117 do livro ‘Parto como um rito americano de passagem‘ (Birth as an American Rite of Passage), de Robbie Davis-Floyd, antropóloga e pesquisadora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Austin (Texas, EUA)
Outra consequência é o aumento do risco de lacerações no períneo e até sequelas mais graves. No livro “Parto Desassistido” (Unassisted Childbirth), de Laura Kaplan Shanley, ela afirma “rasgar o períneo é mais comum para as mulheres que empurraram um longo período de tempo. E estudos [como o citado acima] mostram que empurrar não necessariamente faz o bebê sair mais rápido […]”. E, como Susan McKay, alerta:
“Empurrar, de fato, pode ser perigoso tanto para a mãe quanto para o bebê. Quando uma mulher está empurrando ela está segurando a respiração. O oxigênio, portanto, não está indo ao útero, o que torna a contratação mais difícil e dolorosa. Também não está indo para o bebê dela. Isso pode levar a uma queda na freqüência cardíaca fetal e possíveis danos cerebrais.” Página 20, da 2ª Edição.
Deixa o rio fluir…
“Então, quer dizer que não há necessidade de eu ‘empurrar’ ou ‘fazer força’ quando a dilatação estiver completa (10cm)?” Se a fisiologia natural do parto for respeitada e estiver ocorrendo sem problemas, não. Nas palavras de Nancy Tatje-Broussard: “O processo de nascimento não precisa ser atrapalhado. Pode ser um desdobramento suave em harmonia com os ritmos naturais da vida.”
Mas claro que um detalhe fará grande diferença na hora do nascimento. Parir em posição verticalizada é o mais adequado ao processo natural do parto. Se puder, evite deitar em posição ginecológica, pois essa posição faz com que o corpo lute contra a gravidade. Entre as opções mais recomendadas, estão: de cócoras, de joelhos, em quatro apoios, sentada e até em pé.
“É mais fácil para qualquer objeto cair em direção à superfície da Terra do que deslizar paralela a esta (Lei da Gravidade de Newton). Em posições reclinadas, o útero tem que trabalhar em oposição à gravidade. Assim, ocorre um desperdício de energia, se produz esforço e dor desnecessários e a duração do trabalho de parto e do parto aumenta. A descida, a rotação e o parto do bebê são mais fáceis quando a posição materna direciona o bebê para a Terra, ao invés de direcioná-lo na linha do horizonte.” Janet Balaskas, criadora e defensora do Parto Ativo.
E como diz o ditado norte-americano usado por Laura Shanley na hora de abordar o tema: “Não empurre o rio, ele flui por si só”. Então, respire fundo e se entregue às contrações, como um rio fluindo naturalmente, trazendo o bebê para você. Se conecte com seu corpo e ao bebê – que também faz a parte dele, se empurrando – de forma intensa e sem medo. Traduzindo: Não tenha medo de deixar o útero fazer o trabalho dele.
Lista completa com as referências:
Quer saber como funciona o trabalho de parto? Clique aqui.
“Segunda etapa do trabalho de parto: você não precisa empurrar”
Livro: “Parto como um rito americano de passagem” (Birth as an American Rite of Passage)
Livro: “Parto Desassistido” (Unassisted Childbirth)
Conheça o movimento “Parto Ativo”
Foto em destaque: Kuara Fotografia
Quer me conhecer melhor? Clique aqui.
Das coisas mais emocionantes ler uma matéria sobre esse tema. Uma das coisas que mais vejo arruinar um parto são os puxos dirigidos. Fato que vou compartilhar esse link aos 4 ventos!
Deixem as mulheres parirem!!!
É triste testemunhar mulheres com lacerações de até 3o grau, porque foram incentivadas/pressionadas a “fazer força”… Por isso fiz questão de escrever sobre o tema. Obrigada por compartilhar <3
Perfeito texto! Compartilhandooooo
Que bom que gostou! Obrigada por compartilhar 🙂
Que texto bom! Esses dias eu estava pensando: Pra que fazer força? Se o colo do útero está dilatado, o bebê, pelo seu próprio peso, estando a mãe em posições verticais, irá simplesmente deslizar pelo canal, como uma criança descendo num tobogã rsrs.
E o útero é como o mar, fazendo “ondas” para trazer o bebê, que também é ativo em todo o processo, se empurrando com as perninhas 🙂
Maravilhoso, Natalia!!!! <3
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Amei o texto! Estou planejando uma gravidez para o segundo semestre desse ano e leio muitas coisas para me preparar e ter autonomia. Muito enriquecedor e esclarecedor o texto, traz mais confiança pra gente saber que o corpo sabe o que fazer. Obrigada!
Você começou da melhor maneira: se informando. Espero ter ajudado nessa jornada. Obrigada pelo feedback e que esse planejamento dê certo, com um bebê saudável e um parto cheio de amor e respeito 🙂
Eu fiquei com uma dúvida, lá no final do expulsivo eu tive muita vontade de fazer força. Em algumas forças a Gabriela nasceu. Ninguém me incentivou . Senti o corpo pedindo. Tive laceração. Não é ” correto” fazer está força mesmo sentindo a necessidade do corpo?
Oi, Bianca! A ideia desse texto é mostrar que a força feita pelo corpo é involuntária, então, tecnicamente a mulher não precisa fazer força, porque o corpo dela já está fazendo sozinho. É como aquela vontade incontrolável de ir ao banheiro que até corremos o risco de nem dar tempo de sentar no vaso sanitário. O que não podemos é “segurar” essa força que está trazendo o bebê, ou forçar o corpo na tentativa de “ajudá-lo”, devido aos riscos de laceração e até outros pontos citados acima. É concentrar na respiração e deixar fluir naturalmente: a contração traz o bebê, que se empurra com as perninhas. Espero ter explicado 🙂