O Brasil é um dos países que apresentam as maiores taxas de cesáreas do mundo. Por isso não é difícil encontrar mães que tenham tido seus filhos através da cirurgia. Logo, uma grande parcela das mulheres no país vão ter uma ou mais cesáreas anteriores à nova gestação. E é por isso que o assunto parto normal após cesárea deve ser cada vez mais discutido, difundido e comentado.
A pesquisa Nascer no Brasil (Fiocruz, 2014) mostra que 72% das mulheres desejam o parto normal quando iniciam o pré-natal, porém 52% dos nascimentos são cirúrgicos. E então acontece uma nova gravidez e algumas buscam ainda pelo parto normal, ou natural.
Nesse post você vai encontrar
O caminho para o parto desejado
Autonomia. Immanuel Kant (1970) a define; “independência de vontade de todo o desejo, sendo autônoma a vontade do sujeito quando regulada pela razão”.
É possível que você nunca tenha parado para pensar que as mulheres têm vontades em relação ao tipo de parto que querem vivenciar. É um processo único e exclusivamente feminino, e quando falamos sobre parto estamos falando sobre a capacidade, o envolvimento e a responsabilidade da mulher de trazer seu filho ao mundo. É em seu corpo que cresce um ser, é ela quem nutre a nova vida.
Essa mulher passa por várias fases durante sua gestação na busca pelo parto desejado. Assim que engravida ela precisa encontrar um obstetra, precisa passar por todas as consultas pré-natais, exames, rodas de gestantes, de conversas, psicólogos, exercícios…É um caminho longo, trilhado de diversas formas por cada uma.
Acontece que muitas dessas mulheres acabam mesmo indo para uma cesárea. Afinal, a taxa de cesarianas no país é de 55,5%, sendo recomendado apenas de 10 a 15% pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Então sabemos que a busca por um parto normal no país já é um ato de resistência.
E quando essa luta se volta para a segunda ou seguintes gestações?
Como é o caminho trilhado pelas mulheres que querem ainda um parto normal no país da cesariana?
Ana Laura de Oliveira Taveira (30) e Nathália Campos Rocha Drumond (31) tiveram a primeira filha através de uma cesárea. Ana Laura em uma cesárea eletiva e Nathália em uma cesárea de “emergência”. Após seis anos do primeiro nascimento, ambas viveram um parto vaginal.
Para Ana Laura, foi um parto domiciliar assistido por uma equipe capacitada. Ana conta que sonhava com um parto natural antes mesmo de engravidar da primeira filha “Eu queria saber que dor era aquela que todo mundo falava que eu não daria conta. Fui burramente privada na primeira filha, então sabia que seria difícil alguém me tirar esse direito de novo (e olha, quase que me tiraram).”
Ela relata que após viver a frustração do primeiro parto decidiu que nunca mais ia passar de novo pela situação. Então nunca parou de pesquisar sobre VBAC – PVAC (Parto Vaginal Após Cesariana) “Eu sabia que não podia ter um filho seguido do outro, porque eles iam alegar tempo, eu sabia que precisava ter tudo na ponta da língua, sabia que precisava de gente do meu lado.” Munida de informação Ana Laura pôde ter o parto desejado. Conta que mesmo com a equipe de Parto Domiciliar ainda tinha que passar em algumas consultas com uma obstetra, que tinha “o pânico na cara dela” quando Ana contou que seria um parto em casa.
Também para Nathália a busca pelo parto vaginal foi através da informação. Conta que na primeira gestação teve apenas as informações que o obstetra passava. Na segunda gravidez já estava mais informada e procurou se informar ainda mais.”Passei por consultas de pré-natal com um obstetra do meu convênio recomendado por pessoas que tiveram parto normal e tive uma doula. O restante da equipe foi do plantão do hospital”
Nathália passou por um parto normal em um hospital pelo Sistema Único de Saúde (SUS), assistido pela equipe do hospital e pela doula. “Creio que é importante para as mulheres saberem que mesmo sem dinheiro para contratar equipe dá para conseguir um VBAC ( parto vaginal após cesárea).” Conta ter sido uma experiência que trouxe além de felicidade, o sentimento de força e capacidade.
Afronta do sistema obstétrico brasileiro
Paternalismo. Segundo Beauchamp e Childress “Imperialismo intencional da preferência ou ação de uma pessoa por outra, onde a que se sobrepõe justifica sua ação por tentar fazer o bem ou evitar o mal àquela cuja autonomia foi usurpada.”
Vulnerabilidade. Segundo o Conselho Nacional de Saúde (CNS) “estado de pessoas ou grupos que, por quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de autoderteminação reduzida, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido.”
Essas duas palavras podem nos dizer muito sobre como o sistema obstétrico brasileiro funciona. O paternalismo da equipe médica sobre a mulher, e a vulnerabilidade destas na gestação e parto.
A recomendação da OMS é de que o profissional interfira no nascimento apenas quando necessário. E então voltamos para questão do alto índice de cesáreas, e a assistência obstétrica no país.
As obstetras Melania Amorim e Ana Cristina Duarte levantaram mais de 200 desculpas referidas pelas gestantes e/ou utilizadas pelos profissionais de indicações de uma cesárea. A partir dessa lista podemos observar e comprovar que cada vez mais mulheres estão sendo submetidas ao processo cirúrgico sem real necessidade. Cada vez mais mulheres estão sendo privadas de terem os seus partos desejados.
E não só por essa lista, é bem possível que você já tenha ouvido relatos de partos. Bem possível que a maioria tenha sido cesárea. E que essa mulher passou por uma indicação da cirurgia sem saber ao certo se era mesmo necessário.
O Código de Ética Médico (CEM) tem como um dos seus princípios fundamentais “exorta o profissional de medicina a guardar absoluto respeito pelo ser humano, atuando sempre em seu benefício e nunca utilizando o conhecimento para causar sofrimento físico ou moral”.
Sabemos então que é direito da mulher parturiente que seus desejos e vontades sejam respeitados em relação à gestação e parto. E que o profissional, favorecendo a sua autonomia, esteja atuando com ética e respeito. É dever desse profissional informar e apoiar as vontades da mulher.
Ana Laura relata a influência que sofreu em seu primeiro parto.
“Meu ginecologista foi uma indicação da minha mãe, eu não o escolhi de fato. Meu sonho sempre, mesmo antes de engravidar, era ter um parto mais natural possível, cogitava parteiras rurais (pra mim era a única maneira de ter parto em casa). Eu falava pro médico que parto normal era meu desejo e até as 30 semanas ele dizia: “tá cedo pra falar de parto”. Quando completei 37 semanas cheguei pra ele e disse: “Doutor, e o parto? Eu quero parto normal, já te disse, o que eu tenho que esperar agora?” Ele disse que na minha data provável do parto (DPP) ele estaria de férias e que se eu quisesse parto normal teria que fazer com o plantonista. Meu mundo caiu. Nessa época já ia toda semana as consultas e quando completei 39 semanas ele disse: “Olha, eu viajo no domingo, pelo que eu to vendo, vai ser muito difícil você entrar em trabalho de parto, não tem dilatação alguma aqui”. (Ele fazia toque desde as 37 semanas).
Enfim, marquei uma cesárea em quatro dias pra não fazer com o plantonista. Ainda paguei 1.000 reais pra ele ir fazer.”
Para Nathália “O médico no pré natal da primeira somente dava as informações clínicas. Toque em todas as consultas mais ou menos a partir de 30 semanas. Quando eu perguntei pra ele sobre parto normal ele dizia: eu até concordo se o corpo da mulher permitir, mas acho errado “aquelas coisas de ficar rebolando na bola”.
“Com 38 semanas e 5 dias senti uma cólica repentina e bem forte, acompanhada de uma leve dor de cabeça. Fui para uma maternidade particular e minha pressão estava 16’9. Disseram que eu precisava internar e fazer uma cesárea de emergência porque “corria risco de pré eclâmpsia”. Não foi feita investigação para pré-eclâmpsia. Meus ultras com doppler sempre estavam bons. A cesárea “de emergência” só aconteceu 5 horas depois.”
Nos dois relatos percebemos que houve indicações de cesárea sem justificativas clínicas reais. Que não houve exames ou análises determinantes. E as mulheres foram levadas à realização do procedimento cirúrgico contra suas vontades, através de discursos coercitivos.
E então pensamos o quão difícil pode ser para uma mulher passar pelo parto vaginal após a cesárea, já circundado por diversos mitos. Se tornando uma grande justificativa desnecessária para realização do procedimento cirúrgico.
Daphne Rattner, técnica do Ministério da Saúde, em entrevista com a revista Bioética (2009), diz que o maior responsável pela quantidade de cesáreas atualmente realizadas é o próprio médico. Que a maioria dos profissionais incentivam a cesariana por ser mais rápida, e no caso dos atendimentos particulares, mais lucrativa também.
Ou seja, quando uma mulher passa por essa repressão do sistema uma ou mais vezes, e em algum momento ela percebe o que lhe foi roubado, se inicia a busca pelo desejado. Uma busca mais forte, mais determinante e mais independente.
A mulher que busca por um parto vaginal após cesárea trabalha a autoconfiança, a percepção do corpo, e o seu lugar no mundo.
Ambas tiveram justificativas e foram submetidas a cesariana pela confiança depositada nos profissionais que por ética, deveriam respeitar os desejos e vontades dessas mulheres em relação ao parto.
Ana Laura relata como se sentiu depois de conseguir o parto vaginal após cesárea
“Quando eu pari o que eu senti de verdade foi um sentimento de conexão comigo, de certa forma parecia que eu tinha me reencontrado. Voltei para um eu que fazia escolhas e era respeitada por elas e também uma sensação de que não há nada que eu queira que eu não consiga. No parto, eu pensava o tempo todo que estava sendo muito difícil, mas que era pra ser assim, eu sentia as coisas acontecendo e era impossível parar. Hoje olhando pra trás eu vejo o quanto aquela experiência me transformou como mulher, o quanto eu respeito mais meu corpo, por saber o quão poderoso ele é, o quanto eu aceito minha vida pós maternidade… é aquilo, eu me encontrei em mim.”
Desejo e realidade
“É evidente que quanto maior a agressividade de uma sociedade e a sua capacidade de destruir vidas, mais invasivos são os rituais e crenças culturais no período do nascimento. […] Por que 10 por cento de cesáreas em Amsterdã e 80 por cento em São Paulo?” (Odent, 2004)
No Brasil existe uma diferença dissonante entre o desejo de parir das mulheres e a quantidade de cesarianas realizadas. E quando temos informação, magicamente, uma bolha se estoura!
Essa quebra de confiança em todo um sistema sobre gestação e parto levou as mulheres a entenderem sobre seus corpos e suas capacidades. A olharem para si.
Quando mulheres começam a escutar sobre estudos baseados em evidências científicas, sobre recomendações das grandes Organizações Mundiais e Conselhos médicos percebem que foram vítimas de um sistema paternalista, opressor e machista.
Por roubar-lhes o direito de parir, por tirarem a sua confiança e, assim, dizerem que somente eles tem o controle do nascimento, que são os responsáveis por ela e por aquele bebê. Por a colocarem em uma posição passiva e em uma relação hierárquica.
Onde deveria ser, por direito delas e dever dos profissionais, hegemônica e horizontal. De igual para igual. Com diálogo, informação, consentimento e autorização.
Por isso buscar por uma parto vaginal após cesárea é um ato de luta e resistência. Porque são mulheres nadando contra a corrente do sistema. Batendo de frente com seus opressores e com todo um sistema institucionalizado.
Mulheres são capazes de trazerem seus filhos ao mundo de forma natural, mesmo depois da cesárea. Somente nós temos controle sobre nossos corpos, só nós sabemos o que se passa e o que cresce em nosso ventre. E que as tentativas e os caminhos trilhados vão bater de frente com um sistema difícil, duro e despreparado para ser enfrentado.
Mas não impossível.
Procure por quem quer estar ao lado de vocês nessa luta, resistindo a cada pequeno e grande segundo dessa nova chegada.
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Referências
Indicações reais e fictícias de cesariana
Modelos de Assistência ao parto e taxas de cesárea em diferentes países
FIOCRUZ -Fundação Oswaldo Cruz. Principais questões sobre Parto Vaginal após Cesariana (PVAC-VBAC)
ANS- Agência Nacional de Saúde Suplementar
Cesariana: uma visão bioética. Revista Bioética, 2009. Brasília. Conselho Federal de Medicina