Se você chegou a este texto por estar passando ou já ter passado por uma perda, receba o meu mais sincero abraço. Espero que ele possa lhe acolher nesse momento difícil e também fornecer informações. Se você está apenas buscando informação, o meu sincero obrigada! Espero que aqui você encontre ferramentas que lhe permitam ajudar alguém em situações de perda gestacional.
Nesse post você vai encontrar
O primeiro trimestre da gravidez e sua fragilidade
O primeiro trimestre representa uma zona obscura repleta de medos e inseguranças, por parte da família que vive esta gestação, por parte das pessoas ao redor e também pelos profissionais de saúde. Por isso, muitas famílias preferem contar sobre a gestação apenas após 12 semanas. Existe a crença de que contar aos outros apenas quando a gestação “vingar” evita o mau olhado e o mau agouro. Muitos também acreditam que manter o início da gravidez em segredo evita desconfortos e desgastes emocionais no caso de uma perda, pois além de ser difícil dar a notícia de que uma gestação não evoluiu, quem a recebe nunca sabe ao certo como reagir. Porém, num processo de perda gestacional, a família pode se sentir ainda mais solitária em seu silêncio.
Por outro lado, famílias que escolhem dividir a notícia da gestação optam também por dividir as alegrias e as eventuais tristezas. Contar ou não contar sobre a gravidez neste início é algo muito individual e não é o foco desta discussão, apenas quis ilustrar uma diferença de perspectiva. O ponto é que uma gestação que não evolui no primeiro trimestre nada tem a ver com contar aos outros, e sim com o fato de ocorrer com relativa frequência. A interrupção inevitável de uma gestação até as 20 semanas pode atingir 1 em cada 5 mulheres. Cerca de 15 a 20% das gestações podem terminar em abortamento, com até ¾ ocorrendo antes das 12 semanas. Acredita-se que metade ocorra devido a anormalidades cromossômicas. Estima-se também que 60% dos embriões que não ultrapassam a oitava semana apresentam alguma alteração genética não compatível com a vida.
Esta alta prevalência torna a perda gestacional um acontecimento pouquíssimo considerado pelos profissionais de saúde e também pela maioria das pessoas. Na realidade é um momento muito difícil, especialmente para a mulher, e uma dor legítima que deve ganhar visibilidade. Infelizmente, a crença de que só se deve expôr a gestação após o primeiro trimestre apenas reforça a invisibilidade e a solidão da perda gestacional. Ao passar por uma perda, nos deparamos com um número enorme de mulheres que sofreram em silêncio.
As pessoas não estão preparadas para lidar com a morte. Muito menos em um período em que se comemora e se espera a vida! Por se tratar de algo tão “pequeno” aos olhos dos outros, tenta-se minimizar ou até mesmo negligenciar a dor da mulher que passa por uma perda. É muito comum ouvir frases como: “Calma, logo você engravida de novo” ou “Foi melhor assim, no início, imagina se nasce com algum problema”. Nesse âmbito, o luto de uma perda gestacional costuma ser invisível e silencioso, sem espaço para ser vivenciado. Porém é um luto como qualquer outro. É um luto de sonhos não vividos, de expectativas não concretizadas, é o vazio da falta de alguém com quem se conviveu por pouco tempo e não se teve a oportunidade de criar laços mais profundos.
Fatores que influenciam o luto
A maneira como as próprias mulheres lidam com a situação, de quem recebem apoio e como são tratadas nos estabelecimentos de saúde, são fatores que impactam a experiência da perda de modo muito significativo. Aqui podemos destacar a importância de uma rede de apoio. O fardo torna-se menos pesado se a mulher for cercada de pessoas dispostas a ouvir com empatia e acolher, sem frases prontas que tentem minimizar seus sentimentos. O luto na mulher costuma ser sentido por mais tempo, já que viveu a gravidez, e muitas vezes isso é difícil de ser compreendido pelo outro. No entanto, é imprescindível dar vazão a estes sentimentos, para que sejam elaborados e respeitados. Quem passa pela perda precisa ser estimulado a sentir sua importância, sabendo que a dor é reconhecida e compreendida. Mulheres deveriam ser encorajadas a viver suas gestações independente do tempo que duram, e a viver o luto pelo tempo que for necessário.
Outro fator decisivo é a assistência recebida pela mulher durante a perda. Em geral, profissionais de saúde não estão preparados para lidar com situações de morte ou simplesmente encaram como algo trivial em sua prática clínica. Profissionais precisam ser treinados para ajudar seus pacientes a lidar com a situação, sem esquecer que, para quem está passando por isso, é uma situação única que provavelmente deixará marcas e merece todo o respeito e acolhimento.
A informação também ajuda!
Durante toda gestação, parto, pós-parto e amamentação, a mulher deve receber informação de qualidade e ser encorajada a buscar evidências científicas sobre temas relativos a estes períodos. No caso de abortamento, não deveria ser diferente. No entanto, muitos locais de assistência à saúde não oferecem opções às mulheres e as encaminham direto para determinados procedimentos, muitas vezes sem ao menos conversar sobre o que ela deseja ou sem prestar esclarecimentos sobre os métodos disponíveis. Além do apoio por parte dos profissionais de saúde neste momento, é preciso que se exponha com muita clareza as condutas possíveis e os benefícios e riscos de cada uma, para que a mulher tenha ferramentas para tomar uma decisão informada e consciente acerca de como proceder após uma perda. É importante também que a escolha seja da mulher e que esta seja encorajada a levar em consideração seu estado emocional e não apenas seu estado físico.
Alguns dados técnicos
A perda gestacional no primeiro trimestre pode ocorrer das seguintes maneiras:
– Abortamento completo: geralmente em gestações até 8 semanas. Colo pode estar aberto, com relato de sangramento. Ao ultrassom, a cavidade uterina encontra-se vazia ou com coágulos. Conduta: observação ou esvaziamento uterino se manutenção de sangramento.
– Abortamento incompleto: Colo pode estar aberto, com relato de sangramento e cólicas. Ocorre quando o conteúdo uterino não é expelido totalmente. Ao ultrassom, a cavidade uterina encontra-se com restos ovulares. Conduta: esvaziamento uterino.
– Abortamento retido: geralmente ocorre a parada de desenvolvimento do embrião, porém este se mantém no útero, sem que a mulher sinta nada diferente. O colo do útero encontra-se fechado e pode ocorrer a redução dos sintomas de gravidez, porém algumas mulheres mantém sintomas como se a gestação estivesse progredindo, até os níveis hormonais começarem a cair. Ao ultrassom, o tamanho do embrião pode ser incompatível com a idade gestacional, sem batimentos cardíacos. Conduta: aguardar a expulsão natural pelo organismo ou proceder com esvaziamento uterino.
Dentre as abordagens possíveis para os casos de perda gestacional no primeiro trimestre, pode-se adotar:
– Conduta expectante: especialmente indicada em casos de abortamento retido. Recomenda-se aguardar, por um período de até 30-45 dias, a resolução natural do organismo e a eliminação de todo conteúdo uterino através de sangramento.
– Conduta ativa: indicada para os casos em que não ocorre eliminação completa ou quando a mulher não quer aguardar a expulsão natural. É dividida em tratamento farmacológico, através do uso de drogas que promovam a contração uterina e a dilatação do colo do útero, ou o tratamento cirúrgico, através de procedimentos como curetagem ou aspiração manual intrauterina (AMIU).
Aqui cabe destacar que um abortamento pode evoluir para infecção, portanto é preciso se atentar a alguns sinais como febre, corrimento ou sangramento com mau odor, mal-estar geral, desmaios. Se apresentar estes sintomas, a conduta é procurar o hospital o mais rápido possível.
Na conduta expectante, não há necessidade de internação. Uma maior taxa de sucesso é relatada em casos de abortamento incompleto, em comparação ao aborto retido (96 x 62 %). Em estudos nos quais se aguardou de 2 a 6 semanas, a taxa de sucesso no caso de aborto incompleto foi de 80-90%, em comparação a 65-75% no caso de aborto retido. Dentre suas vantagens, pode-se citar a redução do risco de infecção e do estresse/medo gerados pelo ambiente hospitalar. Muitas mulheres optam por aguardar a resolução natural, porém outras desistem no meio do caminho. Dentre suas desvantagens, é um método mais demorado e que pode requerer um tratamento adicional para esvaziamento uterino. Neste caso, a espera pode impactar negativamente a rotina e pode trazer mais angústia a uma mulher que já se encontra fragilizada pela perda de seu bebê. Geralmente, se não ocorre a expulsão em duas semanas, novos métodos podem ser oferecidos à mulher. Este método não impacta gestações futuras e a mulher pode reiniciar as tentativas logo após o primeiro ciclo.
O tratamento farmacológico é realizado em ambiente hospitalar após internação. É administrado misoprostol (um análogo da prostaglandina E1, utilizado para promover o amolecimento e a dilatação do colo do útero e contrações) por via oral, sublingual ou principalmente vaginal em doses e intervalos regulares até o completo esvaziamento uterino. Pode provocar cólicas dolorosas e sangramento mais intenso, a depender da idade gestacional, além de outros efeitos adversos como náuseas, vômitos, dor abdominal e diarreia. Dentre suas vantagens, evita o emprego de procedimentos mais invasivos e de anestesia ou sedação, apresentando uma alta taxa de sucesso (84 a 93%). Porém após o fim deste procedimento, um ultrassom deve ser realizado para constatar se todo o conteúdo uterino foi realmente expelido. Dentre suas desvantagens, pode ser mais demorado, ocorrer sangramento excessivo e ser desconfortável para a mulher sentir e ver a expulsão. Em alguns casos pode ser necessário realizar um tratamento cirúrgico adicional. O tratamento farmacológico é também utilizado para amolecimento ou dilatação do colo do útero previamente à realização de procedimentos como a curetagem e a AMIU.
Em relação ao tratamento cirúrgico, mulheres que optam por esta resolução apontam como vantagem ser um método mais rápido e amparado pelo âmbito hospitalar, o que traz mais segurança. É realizado sob internação e não compromete a fertilidade futura. O método recomendado pela Organização Mundial de Saúde e pela Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia é a AMIU. É um procedimento que utiliza cânulas com diâmetros variáveis acopladas a uma seringa à vácuo, promovendo a limpeza uterina e retirada dos restos ovulares através de aspiração. Deve ser utilizado em gestações com menos de 12 semanas. Por se tratar de cânulas plásticas e mais flexíveis, os riscos de perfuração uterina são menores que na curetagem. Pode ser realizado sob raquianestesia, sedação ou anestesia local por meio de bloqueio paracervical. Já na curetagem, após dilatação do colo do útero, faz-se uma raspagem cuidadosa do conteúdo da cavidade uterina utilizando a cureta, um instrumento cirúrgico que é uma espécie de colher. Também é realizada sob sedação ou anestesia. O procedimento apresenta mais riscos, como perfuração uterina, infecção, aderências uterinas, trauma do colo uterino e risco de acretismo placentário em gestações futuras. Para os dois procedimentos, não existe um consenso sobre o tempo que deve-se aguardar antes de tentar uma nova gravidez. Para mulheres que passaram por AMIU, costuma-se recomendar 3 meses ou ciclos, e para aquelas que passaram por curetagem, cerca de 3 a 6 meses ou ciclos.
Ao comparar os diferentes métodos, alguns estudos demonstraram uma superioridade de eficácia do tratamento farmacológico em relação à conduta expectante (88,5 x 44,2%), e também uma melhor aceitação por parte das pacientes. Já uma revisão sistemática da literatura comparou a conduta expectante com o tratamento cirúrgico e apontou, para a conduta expectante, um risco aumentado de esvaziamento incompleto do útero, de maior sangramento e de necessidade de transfusão sanguínea, porém sem diferenças em relação ao risco de infecção ou aos resultados psicológicos após cada conduta. Portanto, não existem estudos que apontam grandes vantagens para algum método em detrimento de outro, indicando que no processo de escolha a equipe de assistência deve oferecer os métodos disponíveis e discutir seus riscos e benefícios, porém o mais importante é ouvir e respeitar a decisão da mulher, reforçando sua autonomia.
Referências Bibliográficas:
Grief following miscarriage: a comprehensive review of the literature. J Womens Health. Brier (2008).
A randomized controlled trial comparing medical and expectant management of first trimester miscarriage. Hum Reprod. Bagratee et al. (2004).
The use of misoprostol for early pregnancy failure. Curr Poin Obstet Gynecol. Tang & Ho (2006).
Expectant care versus surgical treatment for miscarriage. Cochrane Database Syst Rev. Nanda et al. (2012)
Atenção humanizada ao abortamento. Ministério da Saúde (2011).
Um texto cheio de acolhimento e informação. Muito obrigada por acolher, todas (nós) mulheres que já viveram essa experiência.
Os profissionais realmente precisam muito ainda aprender a viver isso também com as famílias. Mas existe esperança que o cenário obstétrico, não somente para parto, siga no caminho da humanização da assistência.
Melhor texto que li até agora sobre o assunto. Me senti realmente acolhida pela primeira vez desde que aconteceu comigo, há 3 dias. Você traduziu bem o que estou sentindo, e o tratamento que tive no hospital que se diz “humanizado” só fez eu me sentir pior e minha dor negligenciada…
Obrigada.
Querida, um abraço muito apertado em você! O tempo vai amenizar a dor, ceda espaço pra viver esse lute pois ele merece ser vivido. Ache pessoas que vc possa conversar sobre! Certamente, o entendimento é diferente por quem já passou por uma perda! Fiquei imensamente feliz em ler sua mensagem. Expus o que passei exatamente na tentativa de confortar e acolher outras mulheres! Então minha real intenção se concretizou! Um grande beijo!