Quando ouvi essa pergunta sobre a doula me soou um tanto hostil. No entanto, recorrendo à semântica vejo que a palavra “serve” é uma flexão do verbo “servir” e o dicionário trás diversas definições como: ”Ser útil ou prestável a , fornecer, cuidar de, auxiliar, favorecer, ajudar, desempenhar quaisquer funções, vantajoso, ser favorável” .
Ah, agora sim, fica mais amistoso e consigo responder baseado na origem grega da palavra doula que significa: “mulher que serve”.
Nesse post você vai encontrar
A doula servindo a mulher por séculos
Para contextualizarmos a função da doula no parto e nascimento, teremos que dar um volta pela história. Vamos lá?
Durante séculos, em diversas culturas da humanidade, o parto foi tido como um evento essencialmente feminino. Os registros ilustram, em diferentes civilizações, o envolvimento de mulheres dando suporte ao nascimento e aos cuidados com os recém-nascidos.
No parto participavam as parteiras e outras mulheres pertencentes à família e ao grupo.Essa foi a realidade até o séc XVIII, momento em que surgiram os primeiros obstetras e figura masculina se inseriu no processo do nascimento. Inicialmente eles intervinham quando algo não ia bem com o parto, perceberam que em alguns casos a morte de mulheres ocorria por conta de vírus e bactérias e começaram a utilizar ambientes esterilizadas para realizar os parto. Isso impedia que a parturiente fosse acompanha da por outras pessoas e, gradativamente, o parto foi deixando de ser realizado em ambiente domiciliar e passou a ser realizado em hospitais (Fadynha, 2011).
Foi no século XIX, que o cenário de institucionalização e medicalização daassistência ao parto se intensificou e as gestantes passaram a ser atendidas nos hospitais apenas por profissionais de saúde (Leão M.R.C, Bastos M.A.R, 2001). Desta forma, modificou-se o modelo de assistência praticado até então e foi retirado do contexto o suporte físico e emocional de outras mulheres ao nascimento.
Nos anos 60 e 70, os movimentos hippies e feministas trouxeram á tona a conscientização das mulheres sobre a importância de respeitar as decisões sobre seu corpo e o parto. Na mesma época, os médicos Frédérick Laboyer e Michel Odent , foram os pioneiros a revelar a a importância de um parto mais natural o possível, com a presença de acompanhantes que desse suporte físico e emocional durante o processo (Fadynha,2011). Tais fatores levaram a alguns grupos da sociedade refletirem sobre a conjuntura do parto, e assim houve a retomada de interesse pelo parto natural , ressurgindo com ele a figura da mulher assessorando o parto que hoje conhecemos como doula.
Em 1973, Dana Raphael, utilizou o termo doula no livro intitulado: The Tender Gift: Breastfeeding (anteriormente empregado num artigo em 1969). Originalmente a autora utilizou o termo doula para descrever o tipo de apoio que deveria ser dado a uma mulher após o parto. Desde então, o escopo da doula se expandiu e hoje abrange o apoio e assistência na gestação, parto e pós parto (Blissful, 2016)
Inicio dos anos 80, surgiram as primeiras recomendações da Organização Mundial da Saúde(OMS) pautados em comprovações cientificas dos benefícios do parto humanizado ( assunto para um próximo post) que culminaram em 1996, na publicação de ” Assistência ao parto :um guia prático ” em que há referencias diretas às doulas . (Souza ; Dias, 2010)
No cenário brasileiro, o Ministério da saúde segue as recomendações da OMS e diante das evidências de que o suporte durante o trabalho de parto gera resultados maternos benéficos, a atual legislação cria a possibilidade de que as parturientes recebam alguma forma de suporte. (BrÜggemann; Parpinelli, 2005)
Diante desse contexto , em 2005 foi sancionada Lei n.11.108 11 (Brasil, 2005) , que garante parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato . Ufa, uma conquista importante rumo a humanização.
Mas há ainda muito a se caminhar. Em relação à assistência no período intra-parto, há movimentos por todo o país para instituir a lei das doulas , que visa autorizar a presença dessas profissionais mediante solicitação das gestantes em maternidades e hospitais. Alguns lugares como o município de São Paulo e no estado de Santa Catarina isso já é uma realidade. Outro avanço foi que em 2013 o Ministério do Trabalho incluiu a categoria “Doula” na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) , isso significa que as doulas tem seu trabalho reconhecido pelo governo.
Tais instrumentos legais aliados ao benefício da atuação da doula no período perinatal, parto e pós, têm contribuído para que, a cada dia, a doula consiga resgatar a importante atuação das mulheres no suporte e auxílio à gestantes, parturientes e puérperas.
No entanto, apesar a história nos mostrar a importância da doula na assistência ao nascimento da humanidade no decorrer dos séculos, na história contemporânea a atuação dessa profissional ainda é desconhecida por parte da população.
Mas afinal o que a doula faz?
A Organização Mundial de Saúde (OMS), no guia de Assistência ao Parto Normal: um guia prático, define doula como uma prestadora de serviços, treinada e familiarizada com d procedimentos de assistência. Fornece apoio emocional, medidas para proporcionar o conforto materno, contato físico, esclarecimentos sobre o que está acontecendo durante o processo de parto e nascimento.(Romana et al, 2010).
Segundo a Associação de Doulas da América do Norte (DONA), a doula é uma mulher treinada e experiente em prestar apoio, com capacidade de fornecer contínuo suporte físico, emocional e informativo no processo que envolve parto e nascimento(Silva, R. M. et al [s.d.]).
Já no Brasil, a publicação, Parto, Aborto e Puerpério – Assistência Humanizada à Mulher do Ministério da saúde, define doula como uma acompanhante treinada que, oferece apoio emocional, e informações à parturiente sobre todo o desenvolvimento do processo de parto e nascimento, esclarecendo-a quanto às intervenções e procedimentos, para que a parturiente participe das decisões em relação das condutas a serem tomadas (Brasil, MS,2001)
O fluxograma abaixo, apresenta alguns aspectos relacionados ao suporte fornecido pela doula.
Conforme já discutimos, doulas são profissionais, que prestam assistencia que se inicia no pré-natal e se estende até o parto ou pós-parto imediato.
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Doula na gestação
No período perinatal a doula tem a função de ouvir a mulher, suas expectativas, medos e dificuldades, acolher todas essas questões e juntas, discutir como agir e abordar cada ponto, esclarecer as dúvidas e buscar o caminho para que a gestante se sinta segura, se empondere de suas forças femininas afim passar o pelo período intra-parto confiante em si e no seu corpo.
Esse período é fundamental também para que doula e gestante se conheçam e construam uma relação de confiança, afinal a doula será a mulher que presenciará e auxiliará no processo de parir, momento tão íntimo e singular da mulher.
Aqui cabe uma observação: é de extrema importância que haja empatia nessa díade doula-parturiente , por diversos motivos, dentre eles é que no processo de trabalho de parto a principal linguagem será a sensibilidade de compreender as necessidades sem precisar emitir palavra alguma, no parto é preciso entrega e a parturiente deve se sentir confortável na presença da doula, assim, a empatia esse é um dos principais critérios na escolha da profissional.
Também será durante a gestação que a doula irá fornecer instrumentos como leituras, vídeos e dinâmicas corporais, tirar dúvidas, conhecer melhor a gestante, do que ela gosta, quais terapias poderão ser utilizadas no trabalho de parto, quais exercícios serão possíveis realizar e tudo mais.
Doula no parto
Durante o período intra-parto, a doula prestará assistência e suporte a parturiente proporcionando o conforto físico e emocional , acolhendo a mulher, respeitando e incentivando seu protagonismo durante todo o acompanhamento.
A doula poderá utilizar recursos para aliviar a dor e facilitar o nascimento por meio de massagens , incentivo, orientação e auxílio na movimentação da gestante, aqui cabe propor exercícios na bola de fisioterapia, caminhada, diferentes posicionamentos etc. A doula poderá auxiliar nos exercícios respiratórios, utilizar bolsa quente, banho quente e muito carinho.
Sua função é também estimular o encorajamento, pois no trabalho de parto(TP) muitas mulheres podem ficar com medo e isso desencadeia como efeito o aumento da dor e atrapalha na evolução do processo.
Outras técnicas terapêuticas podem ser realizadas na parturiente como: digitopressão, aromaterapia, cromoterapia e musicoterapia.Todas elas coma intenção de melhorar o conforto físico e emocional e melhorar a percepção emocional do momento do parto.
Doula no pós parto
Após o nascimento, a doula pode conduzir o bebe até a mãe, buscar promover o contato pele a pele e permitir ambiente favorável que haja a primeira mamada, além de continuar dando apoio a mulher. Na visita pós parto a doula buscará identificar se a recém mãe apresenta alguma
dificuldade tanto de ordem emocional como física e tentará identificar qual é a melhor formade ajuda-la, sendo indicando especialistas ou até mesmo uma boa conversa.
O pai ou acompanhante
O acompanhante é o elo da gestante com família e com ele possui envolvimento emocional. Geralmente essa pessoa fica sensibilizada e emocionalmente envolvida durante o trabalho de parto.e seu papel será promover o suporte pessoal.
Davis Floyd diz que no nascimento o pai está parindo com a mulher, por isso, na grande maioria das vezes, não terá o discernimento suficiente para saber qual atitude tomar para auxiliar a parturiente naquela condição.
Comprovações científicas dos benefícios do acompanhamento de uma doula
Estudos realizado pelos pesquisadores Klaus e Kennel (Klaus;Kennel,1997) apontaram resultados globais da presença da doula no parto. Os autores constataram que a atuação da dessas profissionais no intra-parto promoveram:
- Redução de 50% no índice de cesáreas
- Redução de 25% na duração do trabalho de parto
- Redução de 60% nos pedidos de analgesia peridural
- Redução de 40% do uso de ocitocina
- Redução de 30% no uso de peridural
- Redução de 40% no uso de forceps.
Já associação de enfermeiras da saúde da mulher e neonatal (Whonn, 2018), concluíram por meio da avaliação de alguns estudos que, o acompanhamento da parturiente por pessoas que não fazem parte da equipe saúde como a doula:
- Aumentam a taxa de nascimento vaginal espontâneo
- Diminui a duração do trabalho de parto
- Diminui o nascimento por cesariana
- Diminui o nascimento instrumental vaginal
- Diminui o uso de qualquer tipo analgesia
- Houve melhor pontuação de Apgar de cinco minutos.
- Diminuiu o sentimento negativo sobre a experiencia do parto
Ao que concerne a realidade obstértrica brasileira o Ministério da Saúde, em 2001, avaliou ensaios clínicos em relação a presença da doula no parto e concluiu que houve ( Fadynha, 2011).
- Redução da necessidade de medicação para alívio da dor
- Redução no índice de partos vaginais operatórios
- Redução no índice de cesarianas
- Leve redução na duração do trabalho de parto
- Redução de depressão neonatal
- Menor incidencia de depressão pós parto
- Maior índice de sucesso na amamentação com 6 semanas de observação posterior ao parto.
Além disso, grupo Cochrane Collaboration’s Pregnancy and childbirth Group realizou revisões de artigos científicos para inclusão e validação de diversos estudos que contemplavam, grande diversidade cultural e econômica com diferentes formas de assistência. Concluíram o suporte da doula contribui para melhores resultados obstétricos, com diminuição de diversas intervenções e promove a saúde psico-afetiva da mãe e do vínculo mãe-bebê. (Brasil. ANS, 2008)
O mesmo grupo declarou que: Devido aos claros benefícios e nenhum risco conhecido associado ao apoio intra-parto, todos os esforços devem ser feitos para assegurar que t- as mulheres em trabalho de parto recebam apoio, não apenas de pessoas próximas, mas também de acompanhantes especialmente treinadas. Este apoio deve incluir presença constante, fornecimento de conforto e encorajamento. ( Hornet, E.D.,1998)
Doula : o semear e florescer
Diante do que a história nos mostra , das evidências contemporâneas expostas e diversos relatos existentes de mães que tiveram o suporte de doula durante o parto, podemos atribuir a essa mulher, a doula, a nobre missão de servir e auxiliar outras mulheres a trazerem seus filhos ao mundo num processo lindo de semear, germinar e florescer, regando com carinho cada etapa desse cultivar.
E isso…ah isso é incrível, surreal, transcende a materialidade a qual estamos acostumados, transcende a qualquer definição de função, atribuição ou evidência cientifica, transcende a própria vontade e interesse. Naquela hora, somos apenas vibração buscando a melhor sintonia com a mulher dando a luz, somos almas sensíveis para captar o que aquela mulher precisa, somos apenas amor, somos doulas.
Então a doula serve para servir?
Serve para semear cada informação que proporcionará a mulher se conhecer e sentir-se mais segura.
Serve para ajudar germinar cada ideia no coração dessa futura mãe
Serve de suporte, amparo,aconchego, alívio e sobretudo um instrumento facilitador para que a mulher armazene em sua memória o parto como um momento bom, um momento especial, como um lindo florescer.
Michel Odent em seu livro, o renascimento do parto diz que :” a experiência do parto um evento intensamente dinâmico, físico e emocional, com implicações para a vida inteira.” e “ a forma que a mulher vivencia seu parto pode mudar sua vida” (Odent,2002)
Por isso a doula serve para servir a natureza do gestar, parir e maternar.
Referências
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Brasil. Lei n° Nº 11.108, de7 de abril de 2005. Altera a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para garantir às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11108.htm . Acesso em: 28/01/2018.
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Fadynha. A Doula no Parto: O papel da acompanhante de parto especiamente treinadapara oferecer apoio contínuo físico e emocional à parturiente. 3.ed, São Paulo: Ground, 2011.
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