“O médico me disse que eu não tinha passagem”, disse uma jovem cabisbaixa de 23 anos segurando sua filha recém-nascida nos braços. Ela dividia a enfermaria com mais duas mulheres, que também passado por cesarianas. Uma delas afirmou ser “muito magra e fraca” para aguentar o trabalho de parto normal e que não saberia o que fazer na “hora de empurrar o bebê”. A terceira mãe revelou que a Data Prevista para o Parto do seu filho cairia no meio de uma viagem programada pelo obstetra. Para proteger a identidade dessas mulheres, vamos chamá-las de Joana, Patrícia e Mirella.
A “falta de passagem” é umas das 227 “indicações fictícias” mais comuns usadas por obstetras para induzir uma paciente a aceitar uma cesariana eletiva, de acordo com a PhD em Obstetrícia pela Organização Mundial de Saúde Melância Amorim, que integra o grupo de estudos da OMS responsável pela definição dos parâmetros de atendimentos saudável às mulheres, recomendando ou contra indicando procedimentos a partir de evidências científicas. Essa tal de “falta de passagem” seria uma mistura equivocada de avaliação da dilatação do colo do útero fora do trabalho de parto, através do toque vaginal, com a pressuposição de uma Desproporção Céfalo-Pélvica, quando a cabeça do bebê é maior que o ângulo da pelve, a parte dos “ossos da bacia” por onde ele precisa passar. Essa desproporção é rara e só pode ser avaliada durante o trabalho de parto, preferencialmente após a dilatação total. E a dilatação não precisa acontecer nem começar antes do trabalho de parto começar. Não mesmo!
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A lista de Melânia, reeditada e organizada pela obstetriz e educadora perinatal Ana Cristina Duarte em 2017, contempla todas as justificativas apresentadas às três gestantes na hora de “marcar o parto” e muitas outras. Ameaça de chuva, barriga sarada, criança chupando o dedo durante o ultrassom, a cor do cabelo da mãe (gestante loura), quelóide, estado civil da paciente, jogo de futebol e até datas significativas foram usadas como argumento para agendar a cirurgia. Joana, Patrícia e Mirella foram enganadas pelo médico. Assim como milhares de mulheres todos os anos. Elas acreditam estar fazendo o melhor para seus filhos, baseadas em falsas afirmações divulgadas por médicos desatualizados ou mal-intencionados.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, cesarianas sem real indicação médica aumentam o risco de complicações adversas em curto prazo, incluindo hemorragia, infecção, necessidade de hemotransfusão, internação em UTI e morte materna. De acordo com a OMS, se garantida a boa conduta de atendimento ao pré-natal e ao parto, apenas algo em torno de 15% das gestações terminariam em cesarianas. Mas, na prática, a teoria é outra. Vivemos num País com 55,5% de cesarianas, se somados os nascimentos em hospitais públicos e privados, de acordo com os dados do Ministério da Saúde.
Lembra da famosa afirmação que constava nos partogramas para dilatar 1 centímetro do colo do útero por hora. Em 2018, a OMS publicou 56 recomendações para uma experiência positiva de parto. Um dos destaques das novas diretrizes é a eliminação do parâmetro de dilatação tal qual existe. De acordo com a Organização, o parto é singular para cada mulher e essa taxa pode ser alta demais para diversas mulheres saudáveis. O documento diz ainda que a dilatação mais lenta que esse parâmetro, por si só, não é justificativa para intervenção.
A carta afirma ainda que o trabalho de parto pode não acelerar (não pegar) antes do início da fase ativa, que a diretriz estabelece como sendo a fase com pelo menos 5 centímetros de dilatação do colo do útero, além de outros sintomas característicos.
A pelvimetria de rotina, ou seja, a medição da forma e tamanho da pelve materna através do exame pélvico, também não é recomendada pela OMS. Isto porque pode-se criar um falso resultado, levando à condução errada deste trabalho de parto. Então, o que fazer? A Organização Mundial de Saúde reforça que o adequado é avaliar a progressão do parto através do exame cervical (toque), estado das membranas amnióticas e altura da apresentação fetal.
O toque é o exame realizado para avaliar o estágio da dilatação do colo do útero, a sua consistência e posicionamento, além do encaixe, ou não, da cabeça do bebê. É u m exame importante durante a progressão do trabalho de parto, mas pode ser muito desconfortável, física e emocionalmente na mulher, criando uma tensão, psicológica e muscular, que não são nada favoráveis ao ato de parari.
A própria frequência e interpretação dos exames vaginais mudou. Agora, a recomendação é que se espere pelo menos 4 horas entre as aferições, que devem ser realizadas pelo mínimo de profissionais possível. Além de dar mais conforto à parturiente, a nova regra quer diminuir o risco de infecção.
Não ter passagem antes da hora do parto não é um desespero. Para onde ele iria com essa “passagem” aberta, se ainda nem está pronto para sair. Ter dilatação, com bolsa íntegra e sem contrações efetivas de trabalho de parto também não são indicações que o parto será mais ou menos longo. O bebê passa por dentro da pelve da mãe e “escorrega” pelo canal vaginal. formado por músculos e muito elástico, até o lado de fora daquela que foi a sua primeira caserna.
Indicações reais e fictícias de cesariana http://estudamelania.blogspot.com/2012/08/indicacoes-reais-e-ficticias-de.html
Caesarean section without medical indications is associated with an increased risk of adverse short-term maternal outcomes: the 2004-2008 WHO Global Survey on Maternal and Perinatal Health https://bmcmedicine.biomedcentral.com/articles/10.1186/1741-7015-8-71
Nascer no Brasil
http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/arquivos/anexos/nascerweb.pdf
Brasil é o segundo país com maior taxa de cesáreas do mundo https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2018/10/brasil-e-o-segundo-pais-com-maior-taxa-de-cesareas-do-mundo.shtml
WHO recommendations Intrapartum care for a positive childbirth experience
https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/260178/9789241550215-eng.pdf?sequence=1
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