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O caminho ensolarado

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Quem hoje é flor, um dia foi semente

Eu me chamo Herlane, sou pernambucana recifense do frevo e do maracatu, filha de Suzane, Hérlon e Ítalo. Sim, dos 3. Esse último é meu padrasto, a quem chamo carinhosamente de painho (nada mais justo, já que ele me criou junto com a minha mãe e ainda por cima teve que suportar toda a minha adolescência, rsrs).

Sou fruto de um amor intenso e puro entre meu pai Hérlon e minha mãe Suzane. Meu pai era mergulhador e morreu no mar aos 22 anos quando o relacionamento com minha mãe estava no auge de pureza e doação. Quando soube da morte dele, minha mãe ainda não sabia que poderia estar grávida, mas ela rezava todos os dias para que estivesse. Ela queria, ela precisava, que ele tivesse deixado nessa terra um fruto do amor dos dois.

E assim eu fui gestada, num momento de luto, saudade, e muito amor. Eu nunca conheci meu pai Hérlon fisicamente, mas sei quem ele é por todas as histórias que me contaram dele. Conheço bem o Hérlon companheiro, o Hérlon filho, o irmão, o sobrinho, o amigo de mergulho. Cresci ouvindo as histórias de amor e saudade que ele deixou.

Minha mãe mesmo profundamente triste, foi capaz de me maternar com todo o amor que ela tinha no coração. Eu mamei até mais de 2 anos, dormia em cama compartilhada, tomava banho de chuveiro em contato pele a pele e volta e meia usava fralda de pano. Tudo o que eu, como doula, tento transmitir às mulheres. Apesar da insatisfação e rebeldia da adolescência, apenas hoje eu sei, eu sinto, que ela me deu tudo que eu precisava para conquistar todo o resto. Ela me deu seu mais dedicado amor. E eu terei eterna gratidão por isso.

O florescer

Depois de casar com meu pai Ítalo, minha mãe e eu fomos morar em João Pessoa, Paraíba. Ainda lá em 2012 entrei na faculdade para o curso de Direito na Universidade Federal da Paraíba. Todos entendiam que era o curso perfeito para a fervorosa Herlane adolescente (rsrs). Quem me vê hoje calma e pacata talvez não consiga imaginar essa Herlane, mas na verdade que eu sou sagitariana, com ascendente em áries e lua em áries, ou seja, PURO FOGO. Só analisando o resto do meu mapa para entender o quanto eu tive que trabalhar para abrandar o coração e não me queimar inteira até aqui.

E quem me ajudou nesse processo está a 1 passo de entrar nessa história. Foi durante a faculdade que eu conheci meu agora marido. O Iuri é músico, pianista, professor, um artista do coração cheio de suavidade e poesia. Ele foi o aquariano que soprou os ventos certos do meu espírito, me ajudando a arejar a cabeça quente. Fomos tomados por um amor tranquilo e seguro, que me permitiu uma experiência profunda de despertar do feminino. Inspirada pela sua devoção, eu passei a honrar e admirar todas as expressões do meu ser mulher.

E foi a partir da leitura de um texto da doula Kalu Gonçalves (link nas referências), que eu despertei para a questão do parto. O texto falava sobre a beleza da menstruação e como a aceitação dessa manifestação do nosso feminino poderia trazer saúde mental e física às mulheres, inclusive para momentos como o parto e a amamentação. Quero citar especificamente o seguinte trecho: “Quando negamos as diversas etapas de ser mulher, abrimos mão do profundo poder que é ser. O primeiro portal de poder feminino é a menstruação, segue com a primeira relação, fortalece-se com o parto e consagra-se com a menopausa.”.

Naquele ponto da minha vida, eu sabia que o portal seguinte de poder feminino que se abriria para mim seria o parto. O parto! Como eu havia esquecido. Minha mãe sempre quis parir. Ela havia feito alguns cursos de preparação para o parto durante a minha gestação, mas no final eu estava “passando do tempo”, segundo o parâmetro dos médicos, e pela pressão dos familiares o sistema venceu. Acabamos indo para a cesárea, sem que minha mãe sequer tivesse iniciado qualquer processo de indução. Com as minhas irmãs a história se repetiu, a desculpa dessa vez era a clássica “uma vez cesárea, sempre cesárea”. Apesar disso, a minha mãe sempre foi a entusiasta do parto normal, falava das desvantagens da cesariana para todas as minhas tias e tentava convencê-las a parir a todo custo. Eu acabei absorvendo essa ideia desde pequena.

O despertar

Inspirada por tanto amar, eu comecei a pesquisar quais seriam as alternativas na minha cidade para um parto normal respeitoso e que me permitisse viver toda aquela potência sobre a qual havia lido. Apesar de não pretender ter filhos naquele momento, andava lendo alguns textos sobre parto e em um deles aprendi sobre o papel da doula. Imediatamente digitei no Google ‘Doula João Pessoa’ e descobri um curso da prefeitura que anualmente capacitava mulheres para atuar como doulas na principal maternidade pública da cidade. No mesmo instante, liguei pra secretaria responsável e fui informada que no final daquele mesmo mês (estávamos em maio de 2015) estaria saindo o edital para a formação de novas doulas. Era a minha deixa.

Foi tudo muito rápido. Eu estudava e fazia estágio, eu estava em outro mundo, outra área do conhecimento, mas de uma hora para outra apareceu o curso e eu tinha que fazê-lo. Mesmo sem entender bem aonde aquilo tudo iria me levar, mesmo sem entender como daria tempo de conciliar tantas atividades, mesmo sabendo qual seria a surpresa da minha família, eu não podia dizer não. Eu sentia um chamado muito forte e não tinha como questionar aquela escolha, não podia me negar àquela possibilidade.

Acabei encontrando tempo para fazer o curso de doulas e participar do projeto Doulas Comunitárias Voluntárias na maternidade. Dei plantões semanais de 12 horas, conciliando faculdade, estágio e voluntariado. Eu faltava aqui e compensava alí, tirava um pouquinho da faculdade e colocava no estágio e vice-versa. Assim fui caminhando e, enfim, me tornei doula.

Foto: Suzy Araújo

O ativismo

Como estudante de direito e doula, muito naturalmente eu passei a unir os dois mundos. Na maternidade eu acabava me deparando com muita violência, e tendo conhecimento do que era o natural nos processos de parturição, muito me surpreendia o quanto a assistência de saúde violava as mulheres em seus direitos e dignidade.

Como minha universidade tinha uma cultura jurídica bastante voltada para o estudo dos sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos, com muitos projetos de pesquisa e extensão no tema, eu já tinha alguma familiaridade com as questões voltadas para os direitos humanos das mulheres e passei a me interessar ainda mais desde então.
As normas que vinculam todo o sistema obstétrico eram constantemente descumpridas e em vez de visualizar um erro das técnicas de saúde empregadas eu visualizava uma violação de direitos e deveres. Comecei a conhecer pessoas que estavam no movimento de humanização do parto na cidade, pessoas inspiradoras cuja vida e dedicação à melhoria da assistência ao parto me incentivaram a conectar o pouco que eu sabia sobre o direito com o que precisava ser transformado.

Ajudei a organizar um evento acadêmico sobre o tema da violência obstétrica com uma amiga do curso de direito, estive no árduo processo de aprovação da lei municipal de doulas de João Pessoa e me inseri no Coletivo pela Humanização do Parto e do Nascimento na Paraíba, quando passei a pensar estratégias para provocação dos atores de justiça sobre a realidade obstétrica do estado.

Aos poucos a causa foi me absorvendo, até que no dia 23 de novembro de 2016, dia do meu aniversário, recebi um telefonema do Ministério Público Federal (MPF) me convocando para uma vaga de estágio. Minha felicidade não tinha fim, eu teria a oportunidade de conectar as pessoas responsáveis pela defesa dos direitos das mulheres à realidade de violações e ao tão pouco discutido tema da violência obstétrica.

Consegui apresentar o tema à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão com a ajuda de outras mulheres ativistas do Coletivo e coisas lindas começaram a acontecer. Um ano depois da minha chegada, depois de muitas reuniões sobre o tema, o MPF realizou junto com o Ministério Público da Paraíba, a Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Estado uma Audiência Pública sobre Violência Obstétrica (link nas referências), cujas convidadas a palestrar eram ninguém menos do que a Dra. Waglânia Freitas, enfermeira obstétrica e professora da UFPB, e a Dra. Melania Amorim, médica obstetra deusa da humanização do parto.

Muito me orgulha dizer que, fruto dessa audiência, desde de março de 2018 a Paraíba conta com o Fórum Interinstitucional Permanente de Prevenção e Combate à Violência Obstétrica (link nas referências). Este não significa um final feliz de contos de fadas para as mulheres da Paraíba, mas é um bom começo para a luta pela mudança, significa que ao menos os instrumentos de efetivação de direitos estão atentos à questão e dispostos a enfrentar as inúmeras dificuldades que estão por vir.

A mudança

Entre o meio de 2017 e o início de 2018, entre outras coisas, eu passei na OAB, ajudei a organizar uma audiência pública, doulei umas mulheres, apresentei monografia sobre violência obstétrica, colei grau na faculdade, me casei com Iuri e, pela vontade do destino, vim morar no Rio de Janeiro. Eita, quanta coisa! Precisei de muita ajuda, muita força divina, muita yoga, florais e massagem ayurvédica para chegar até aqui, mas cheguei cheia de amor e alegria.
Nessa nova fase tenho procurado nutrir o coração de esperança, encorajar a Herlane menina e cultivar as forças necessárias para construir redes e buscar espaços de atuação tanto como doula e educadora perinatal, quanto como advogada. Que venha muito trabalho nessa terra de gente com coração aberto.

Vista do MAR (Museu de Arte do Rio)

Referências

A beleza da menstruação, disponível em: http://vilamamifera.com/belezamamifera/a-beleza-da-menstruacao/

Audiência pública discutiu a violência obstétrica na Paraíba, disponível em:
http://www.mpf.mp.br/pb/sala-de-imprensa/noticias-pb/audiencia-publica-discutiu-a-violencia-obstetrica-na-paraiba

Ministério Público Federal na Paraíba integra fórum permanente contra violência obstétrica, disponível em:
http://www.mpf.mp.br/pb/sala-de-imprensa/noticias-pb/mpf-pb-integra-forum-permanente-contra-violencia-obstetrica

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Doula Herlane Barros (RJ)

Doula, educadora perinatal e advogada com capacitação para casos de violência obstétrica atuando no Rio de Janeiro-RJ.

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  • Herlane, você é uma inspiração para mim. Obrigada por esse texto tão inspirador e cheio de amor. Um beijo no seu coração. Saiba que gosto muito de você! ?

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