Nada melhor que um pouco de realidade pra entender o que é considerado “normal” numa cesárea e só então entender o que pode ser diferente. Eu passei por uma cesárea eletiva desnecessária com o obstetra a quem eu confiava o meu parto normal. O médico que sabia desde a primeira vez que nos falamos que eu queria esse parto.
Meu filho nasceu como mais de 50% dos brasileiros nas últimas décadas. Por uma cirurgia de indicação minimamente duvidosa.
Passa um café e vamos de história.
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Quando descobri a gravidez já sabia que desejava um parto normal. Sabia que era complicado achar obstetra que atendesse parto pelo plano de saúde e que muitas gestantes passavam por experiências difíceis. Por isso fui atrás de profissionais com indicações de assistência a parto normal. Achei o obstetra que deu assistência aos sete partos normais da minha sogra e fui confiante.
A cada consulta pré-natal eu tentava falar sobre o parto, mas ele desviava dizendo que se tudo seguisse bem, eu poderia ter meu parto normal. Eu acreditava que era a confiança dele nesse processo tão natural do corpo.
Com 38 semanas gestacionais, numa consulta de rotina, ele solta:
“Está chegando o feriadão [Páscoa] e eu e toda minha equipe vamos viajar. Ela [ele falava de mim pra minha mãe] pode entrar em trabalho de parto, ser atendida por um plantonista mal humorado, passar horas e horas sofrendo e no final ‘ir pra faca’. Num é melhor a gente agendar?”
Minha mãe me acompanhava e ela viveu exatamente o que o obstetra falou no dia em que eu nasci: entrou em trabalho de parto, o obstetra pré-natalista não atendia o telefone e ninguém o encontrava. Ela foi atendida pelo plantonista, foi deixada em uma sala a sós com meu pai por horas e o parto “não evoluiu”. Ela foi convencida de que não iria dilatar mais e foi levada “pra faca” depois de passar horas e horas sofrendo.
Minha mãe sofreu. Não pela dor em si das contrações, mas por viver algo totalmente desconhecido sem alguém ao lado explicando o que esperar. Apesar de estar na maternidade ela não tinha assistência respeitosa e atualizada.
Mainha viveu o que o obstetra falou naquele consultório. Ela viveu duas vezes. A minha cesárea foi agendada.
Na terça-feira seguinte, cheguei às 11h da manhã na maternidade como combinado. A cirurgia que estava marcada pras 20h. Nesse meio tempo eu fiquei no soro, sem comer, sem beber água. Foi feita tricotomia por enfermeiras como se eu fosse um objeto inanimado. Meu filho estava alto e o médico achou de bom tom usar ocitocina para que ele descesse mais.
Entrei para a cesárea após o horário previsto: a gestante anterior não respondia a anestesia para iniciar a cirurgia dela. Quando chegou a minha vez, às 22h, mainha me acompanhou até a entrada do bloco. Logo foi separada de mim para se parametrar. Eu entrei sozinha.
Durante a aplicação da anestesia, me segurando numa enfermeira que não queria eu a segurasse a ouvia dizer que se eu mexesse ficaria paraplégica. A anestesia foi aplicada e eu fiquei invisível ali:
Fui deitada, amarrada pelos pulsos, ignorada por toda a equipe enquanto conversavam sobre suas vidas e os planos para a Semana Santa.
Minha mãe chegou, finalmente. Eu vomitei e ela me limpou. Remexe, remexe e meu filho nasceu. Eu não vi.
Ele foi tirado, esfregado, aspirado, cutucado, medido, pesado, medicado, enrolado. Tratado como um objeto e, com certeza, não como um bebê.
Não teve colo.
Não teve toque.
Não teve Hora de Ouro.
Foram 5 minutos de “mamãe te ama, a gente se vê daqui a pouco” antes de levarem ele pro berçário por 2h intermináveis.
Eu fiquei sozinha. De novo. Porque quando ele foi levado pro berçário, mainha foi junto e não permitiram que ela ficasse com ele. E nem que voltasse pra ficar comigo.
“A cesárea foi um sucesso!”
Para muitas pessoas, uma cesárea normal. Realmente, essa é a rotina da cesárea: uma cirurgia feita de forma impessoal, rotineira, violenta.
Nada de novo sob o sol.
A cesárea que eu vivi há 14 anos é realizada dessa forma ainda hoje. Iniciada enquanto a gestante está sozinha e quem lhe acompanharia está no sofá do “estar” aguardando alguém lhe autorizar a entrar no centro cirúrgico. Deixando os braços amarrados, campo alto, luzes fortes, ar frio, conversas paralelas. Corte precoce de cordão, bebê afastado, aspirado, calculado, enrolado, privado de toque real e afastado por horas.
Mas cesárea não é tudo igual.
Respeito, acolhimento e boas práticas cabem em todas as vias de parto.
Num cenário respeitoso, a cesárea pode ser conduzida de uma forma gentil e alinhada com as boas práticas de assistência ao parto.
Presença integral de acompanhante e doula, desde a aplicação da anestesia até o final da cirurgia. A presença da doula é permitida em cidades e estados com lei da doula.
Ser informada do passo a passo de cada procedimento.
Permanecer com os braços livres, sem amarras.
Campo baixo para ver o nascimento do bebê. Não dá pra ver o corte sendo a pessoa aberta na mesa, mas é possível acompanhar a saída do corpinho do bebê.
Segurar o bebê no colo enquanto a cirurgia continua, podendo contar com apoio de acompanhante, doula ou pediatra.
Amamentar durante a cirurgia.
Não precisa de pressa para medir e pesar. A vitamina K pode ser administrada enquanto o bebê está acolhido no braço da família. O teste de apgar é realizado sem necessidade de afastamento. E outras avaliações podem esperar alguns minutos.
A cesárea salva vidas que precisam ser salvas. Se as vidas ali não estão ameaçadas é a própria cirurgia desnecessária que coloca gestante e bebê em riscos desnecessários.
Todos os dias cesáreas acontecem. Segundo a Organização Mundial de Saúde, apenas 15% apresentam indicações de saúde que as justifiquem. Seja uma cesárea com ou sem indicação, a forma de ser realizada pode ser diferente. Indicação de saúde é diferente de forma de prestar serviço. E todas as vias de parto podem ser conduzidas de forma mais acolhedora.
Se você quer conhecer mais possibilidades para um nascimento acolhedor, gentil, seguro e realmente humanizado, fala comigo.
Declaração da OMS sobre as taxas de cesárea, da Organização Mundial de Saúde.
Diretrizes de atenção à gestante: a operação cesariana, do Ministério da Saúde do Brasil. 2016.
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