A dor que transforma: a história do nascimento da doula Luiza Falcão

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Esta que vos fala é Luiza Falcão, uma doula jornalista, mãe, mulher e feminista. Ouvi de uma grande mestra que podemos evoluir pela dor ou pelo amor. Nasci e cresci aprendendo pela dor. Até o dia que minha filha nasceu. Um parto longo, lindo, quase sem dor, mas cheio de transformações. Aprendi com, por e pelo amor. Agora, sigo aprendendo pela alegria. Foi depois de um pós-parto bem prolongado que resolvi me dedicar a fundo a gestações, parto e pós-partos, com a certeza que posso auxiliar mais mulheres a viverem com amor.

A dor da solidão: um parto violento

Uma mulher está prestes a parir a primeira filha em uma maternidade pública de Olinda, Pernambuco, em julho de 1990. Na cidade há dois meses, ela se sente só. Nenhum acompanhante pôde entrar. Não se falava em doulas na época. Ao lado dela, uma mulher dá à luz ao sexto filho e outra perde um bebê. Todas solitárias. “Tudo é dor. E toda dor vem do desejo de não sentirmos dor mais”, como diz a canção Quando o sol bater na janela do teu quarto, de Legião Urbana.

Quando o sol bateu e encandeou a escuridão da partolândia, a mulher pariu. Pariu num parto cheio de dor e medo, violência obstétrica, episiotomia, ocitocina sintética, fome, sede e abandono. Mal viu a filha, que foi levada para procedimentos invasivos, desconfortáveis e observação no berçário. Era a praxe. Restou a fome, a sede e o abandono.

A dor que não passa: sem lei, sem garantias

Minha mãe nasceu doula e não sabia. Foto: arquivo pessoal. Reprodução não autorizada.

Este é o cenário onde nasceu Luiza, a menina que queria ser doula, mas não sabia o que a palavra significava. Este é o cenário onde nasceram milhões de pessoas no Brasil nas últimas décadas. E ainda nascem, todos os dias. As marcas deste violência acompanham mães e filhos por dias, meses, anos. Para o resto da vida.

A luta pelo fim da violência no parto surge na década de 1980, impulsionada por grupos feministas, e se intensifica nos anos 2000, sendo incorporada pelo movimento da medicina baseada em evidências. A lei que garante à mulher o direito de ter um acompanhante escolhido por ela durante o pré-parto, parto e pós parto imediato é de 2005, 15 anos após a criação das bases do SUS. O prazo para a norma entrar em vigor era julho de 2006, mas até hoje, hospitais públicos e privados do País seguem desrespeitando vidas, mães, pais, filhos, famílias.

A dor que se perpetua: violência obstétrica

Depois de um parto violento, minha mãe não voltou a parir nos hospitais. Teve três partos domiciliares. Ela queria fugir do que no futuro seria chamado de violência obstétrica. A expressão engloba desrespeito, assédio moral e físico, abuso e negligência e pode até levar à morte.

Em 2015, a pesquisa Nascer no Brasil, coordenada pela Fiocruz, mostrou que os partos no Brasil “não tem sido uma experiência natural nem para pobres nem para ricos”. Por um lado, a explosão dos partos vaginais violentos e por outro, a epidemia de cesarianas desnecessárias e, frequentemente, ainda mais violentas.

Foi durante a faculdade de jornalismo que eu descobri a verdade “nua e crua” do nascer no meu País e na minha Região. Ninguém que eu conhecia tinha uma lembrança boa do próprio nascimento. Nenhuma das mães falava com alegria dos próprios partos.

A dor que transforma: o encontro com a doulagem

Roda de gestantes. Foto: arquivo pessoal. Reprodução não autorizada.

Formada em Jornalismo e trabalhando no Recife, a cidade do maior polo médico do Norte e Nordeste e segundo do Brasil, não demorei a entender por que a taxa média de cesáreas na Região Metropolitana era de 54,5%. De acordo com dados de pesquisa do Comitê Estadual de Estudos da Morte Materna em Pernambuco (CEEMM-PE), em maio de 2015 as taxas de cesariana variavam entre 24,9% e 92,1% nas dez maiores maternidades públicas e privadas da RMR. Muito longe do recomendado pelo Organização Mundial de Saúde (OMS), que é entre 10% e 15% de nascimentos cirúrgicos.

A busca por informação de qualidade no universo do parto feliz e respeitoso me levou a um novo caminho. A doulagem. Me formei em 2016 e engravidei durante o estágio. Casada há quatro anos, a gestação foi planejada e meu companheiro me acompanhava nas rodas de gestantes.

Nesta época, conheci outras gestantes que tinham o mesmo medo de cair em uma cesariana eletiva ou em um parto normal desrespeitoso que eu. Optei por um parto domiciliar planejado, ciente de que só poderia viver meu sonho se minha gravidez fosse de baixo risco. Tinha doula, parteira e um círculo de confiança que me traziam segurança.

A dor que desorienta: o aborto

Foto: arquivo pessoal. Reprodução não autorizada.

Com seis semanas de gestação, sofri um aborto espontâneo seguido de uma suspeita de gravidez ectópica, que pode resultar em ruptura da trompa, com consequente choque hemorrágico e morte. A dor da perda é inexplicável, é uma dor que desorienta, que nos faz pensar em desistir da vida.

Fui atendida na maternidade que tinha o maior índice de cesarianas da cidade e tratada de forma cruel e violenta pela obstetra de plantão. Esta é a 3ª maior causa de mortalidade materna, ainda assim, a especialista negligenciou o atendimento, minimizou os riscos e afirmou que “se qualquer mulher drogada na rua consegue engravidar, eu também conseguiria”. As dores eram tão fortes que me engoliam por dentro.

Acompanhada pelo meu então ginecologista e pelos exames adequados, segui o processo natural do meu corpo. Seria terrível passar por um procedimento invasivo como a curetagem de forma desnecessária. Fiz terapia, acolhi a minha dor e me refiz como mulher e como doula. Daí para a frente, me dedicaria apenas pós-partos até que eu sentisse novamente pronta.

A dor do risco: o medo

Três meses depois, liberada pelo obstetra para tentar novamente, eu estava grávida. Gravidez com cautela por causa da perda anterior. O medo nos acompanhou desde o resultado do primeiro exame e o segredo era nossa palavra de ordem. Difícil esconder uma gestação com tantos enjoos, vômitos diários e um desejo louco de segurar aquele bebê no colo.

O risco da perda foi substituído pelo risco da violência obstétrica. A primeira mudança de médico foi uma necessidade. Ele era cesarista assumido e não assistiria ao parto. A outra opção era confiar que pegaríamos um plantão humanizado e sem intervenções desnecessárias. Era confiar que eu não passaria pelo que minha mãe havia passado.

Com 29 semanas descobrimos a diabetes gestacional e a gravidez se tornou de risco. Era o fim dos meus planos de parto A, B e C. Não poderia mais garantir o parto domiciliar, fui abandonada pela minha médica do plano de saúde e os hospitais públicos de referência ao atendimento de gravidezes de risco no Recife são famosos pela superlotação e pelo atendimento violento às gestantes.

Foto: Arquivo pessoal. Reprodução não autorizada

Três longas e loucas semanas depois, encontrei um médico acolhedor. Mudei a alimentação, fiz reiki, acupuntura, aromaterapia, mergulhei na terapia com a psicóloga. Exames de sangue semanais mostraram que estava dando certo. Os de ultrassom ainda mostravam uma bebê que crescia mais rápido que o normal, porém num padrão aceitável. Percentil 97 com circular de cordão, dizia o médico. Era o roteiro de um filme de terror se repetindo em looping. Como eu conseguiria fugir desta vez?

Na consulta das 38 semanas, o médico alertou para o tamanho estimado da criança, olhou os exames mais uma vez e disse que eu estava “curada” da diabetes gestacional, que estava liberada para parir como quisesse, desde que o parto fosse logo. “Esse bebê não pode passar de 5kg ou será muito arriscado”, disse, argumentando que poderíamos induzir. Depois, pediu pra fazer um toque. Achei desnecessário, mas porém consenti. Tinha 6 centímetros de dilatação e não sentia nada além da sensação de que daria certo.

A dor orientadora: o parto

O trabalho de parto começou quatro dias depois, no domingo pela manhã. Mantive contato com a minha doula, com a parteira e com o médico. Sim, a doula também tem doula e ela é fundamental! Nós sabemos o quanto o suporte emocional faz diferença, que reduz as intervenções desnecessárias, que reduz os pedidos de analgesia, melhora a experiência do parto.

As contrações pegaram ritmo no dia seguinte à noite. Parteira chegou às 20h e às 22h eu estava com dilatação total. Ao contrário do que se pode imaginar, o trabalho de parto foi longo, mas as doulas, as parteiras, meu marido, nossos gatos foram incríveis e me fizeram sentir pouca dor e muita alegria. Manobras para reposicionar a bebê, líquido amniótico claro, batimentos cardíacos fetais estáveis. Tudo ótimo, mas nada de puxo, de força, de bebê encaixar. A falta de dinâmica e uma oscilação nos batimentos cardíacos da bebê levaram a parteira a encaminhar para a maternidade.

A dor da cura: um nascimento feliz

O hospital me fez reviver meu nascimento, o parto da minha mãe, mas de uma forma completamente diferente. Tudo se encaixou, meu marido na minha frente, doula com rebozo atrás, olhos fechados para ir na partolândia buscar minha filha.

Nascimento de Dandara. Foto: arquivo pessoal. Reprodução não autorizada.

Dandara nasceu na terça-feira, em um parto normal hospitalar humanizado depois de um parto domiciliar planejado e acompanhado por uma equipe competente. Chegou com 4,200 kg e 52 centímetros, em uma descida suave, sem laceração, sem intervenções, com golden hour, com contato pele a pele, cordão cortado pelo pai apenas quando parou de pulsar. Fomos respeitadas em todas as nossas escolhas, em todas as recomendações do Ministério da Saúde e da OMS. Fomos acolhidas e amadas.

Vivemos um pós-parto intenso e transformados. Difícil, porém bom. Quando voltei à mim, só queria que todas as mulheres fossem respeitadas, acolhidas e orientadas como eu fui. Quando voltei à mim, só queria ser doula.

Referências:

Violência Obstétrica “Parirás com dor”. Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres (2012) https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.pdf

Violência obstétrica no Brasil e o ciberativismo de mulheres mães http://www.scielo.br/pdf/icse/v21n60/1807-5762-icse-1807-576220150896.pdf

Nascer no Brasil http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2014001300001&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Comitê aponta alta incidência de cesáreas no Grande Recife http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2015/05/comite-aponta-alta-incidencia-de-cesareas-no-grande-recife.html

Gestação ectópica e aborto espontâneo http://www.medicinanet.com.br/conteudos/acp-medicine/5678/gestacao_ectopica_e_aborto_espontaneo_%E2%80%93_eric_d_levens_michael_d_wittenberger_alan_h_decherney.htm

Doulas: definição e benefícios segundo as evidências científicas https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cssf/arquivos-de-eventos/audiencia-publica-2018/audiencia-publica-debater-o-pl-8363-2017-que-dispoe-sobre-o-exercicio-da-profissao-de-doula/apresentacao-maira

Evidências qualitativas sobre o acompanhamento por doulas no trabalho de parto e no parto http://www.scielo.br/pdf/csc/v17n10/26.pdf

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Uma resposta para “A dor que transforma: a história do nascimento da doula Luiza Falcão”

  1. História linda, marcante e encorajadora! Quando a gente entende que até a dor (um dos maiores medos que temos na vida) pode orientar, a vida se destrava. Te amo!

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