Carta para minha primogênita

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Quem aqui conhece o bordão…

Ser mãe é padecer no paraíso!

( Pois então, eu ouvi muito. )

E essa era uma das frases que me faziam questionar quantos anos eu teria para escolher ter um filho. Sabia que queria uma família grande, fui criada por mãe solo sendo filha única e a caçula de cinco irmãs do lado paterno, com quem não tinha contato durante anos.
A ideia de gerar e ter filhos eram parte do projeto para anos mais tarde, quem sabe um pouco antes dos trinta anos, depois de me formar na faculdade e me posicionar no mercado.
Mas perdi o controle de tudo, antes mesmo de completar 18 anos.

Acervo particular

Carta para minha filha

E aqui eu escrevo uma carta para você minha filha, a primogênita que chegou me ensinando que mesmo se você não conquistar tudo que idealizar, a vida pode trazer mais do que poderia sonhar.
Quero aqui deixar registrado como sua chegada e nascimento fazem parte da mulher que sou hoje e de que tanto me orgulho.
Sua gestação não foi planejada, confesso que chorei durante noites por medo do parto, de amamentar, alimentar, te educar, e como seria sendo mãe. Engravidei tomando anticoncepcional, que era diariamente no mesmo horário, sem esquecer nenhum dia, mas eu sou parte daquela pequena porcentagem que têm o risco de gestar nesse método contraceptivo.
Fazer o pré natal com o médico do convênio mais famoso da cidade, escolher a maternidade, preparar o enxoval, e o seu cantinho parecia trivial, e não preenchiam aquele espaço no peito que me dizia que algo estava faltando.

O vazio que existia em mim

Eu não imaginava o quê, mas aquilo que eu senti enquanto te gestava, era o desejo enorme de participar ativamente do seu nascimento, que seria parte do processo de me tornar mulher e me despedir da menina que fui até ali, e isso minha querida menina, eu só consegui anos depois…
Eu planejei durante a gravidez como seria entrar em trabalho de parto, e junto ao meu obstetra acertamos qual momento eu iria para a maternidade, quando receberia anestesia e até quando eu poderia comer e beber, minha confiança era tão grande que acatava tudo que ouvia nas consultas, sem questionar, apenas afirmava o quanto desejava ter um parto normal e alertava que a cesariana seria em ultimo caso.
Hoje eu sei que gestação saudável pode ir além das 40 semanas, que internar muito cedo na maternidade não traz benefícios, que eu poderia me alimentar e me manter hidratada por todo o tempo, que tomar uma anestesia e aceitar um cortezinho (episiotomia) no meu corpo para “facilitar” a sua saída não era de fato necessário.

Foto Mateus Marx

Porém o apoio que eu recebia da família eram as frases como essas:

• O importante é nascer com saúde.
• A cesariana não é tão ruim assim.
• Você é corajosa de querer parto normal.
• Eu tive cesariana e foi ótima.
• Você não será menos mãe se fizer cesária, viu!?
• Por que sentir dor? A medicina evoluiu para não passar por isso!

O que eu queria mesmo era conversar com a sua bisavó materna, aquela mulher que pariu 10 filhos em casa, mas eu não sabia com quem falar sem parecer uma louca que desejava ter um parto. Mas o estranho era isso: o nome é parto NORMAL!
Chegou às ultimas semanas de gravidez e o cenário mudou muito filha, tinha a pressão de todos querendo te conhecer, a mamãe já bastante cansada, tinha inchado bastante no final de outubro, e foi na ultima consulta de pré natal que eu ouvi todas as palavras que mais me influenciaram até ali.

• Seu bebê é bem grande.
• Sua pressão está subindo, e sua mãe teve risco de pré-eclampsia na hora do parto.
• O bebê ainda não encaixou.
• Não tem nada de dilatação e o colo está alto e grosso.
• Vamos marcar para o dia do aniversário do pai.
• Já vai dar 40 semanas e pode entrar em sofrimento.
• Minha indicação como obstetra é fazer a cesariana.
• Se você não preparar sua equipe, pode precisar de uma cesariana de emergência e não ter médico no hospital, lembra que tem feriado semana que vem…

Meu mundo desabou, se eu não aceitasse teria que procurar outro médico, chorei muito e ali entreguei as fichas… Parecia que afirmava que desde o seu nascimento eu já estava falhando, isso me doeu até a alma, pesou muito durante anos na minha maternidade. Passei a noite em claro, esperando um milagre, mas não era sua hora de nascer.

O nascimento

Você nasceu na manhã seguinte, a cirurgia não foi uma boa experiência para mim, passei muito mal, aquele centro cirúrgico era gelado, com muitas luzes, e infelizmente a trilha sonora do lugar era a conversa sobre o banheiro reformado de 20 mil dos médicos que atuavam ali. Ouvi sobre churrasco do fim de semana, e tudo que eu senti foi uma pressão muito forte de duas pessoas subindo em cima de mim para que você fosse extraída do meu útero.
Você chorou tão forte, que minhas lágrimas escorreram depressa, mas o sentimento não era de emoção, era da sensação ruim de não me deixarem te segurar, eu só queria te acolher, e quando te vi finalmente já enrolada num campo e você ouviu minha voz, tentou me segurar com as mãos esticando para mim, mas te levaram para longe, e só nos reencontramos 7 horas e meia depois. Fizeram todos os procedimentos de protocolos daquele hospital, que eu sei que eram desnecessários e pelos vídeos pude te ver lutando contra tudo que era invasivo em você.

Acervo pessoal

Seu nascimento não foi nada do que eu imaginei, mas foi o que me despertou para o que significa nascer com respeito, o que é ter uma assistência humanizada.
Foi difícil criar vínculo afetivo, a construção do amor materno é diária e sempre será. A amamentação foi um processo complicado e se findou antes do que eu gostaria hoje. Nossa história é tão forte eu sei minha querida, e é parte essencial da mulher que eu me tornei.
Filha, a sua cesariana eletiva foi verdadeiramente, o inicio da minha trajetória na humanização que retomou a quase 8 anos depois quando me formei doula.
Peço desculpas por você ter sido quem me mostrou o quanto a maternidade é descontrole, e te agradeço por ter me escolhido e ensinado o quanto é possível viver um nascimento baseado no amor e no protagonismo da mulher, mesmo que a sua transição extrauterina não tenha sido assim.

Um futuro melhor

Meu desejo minha amada filha, é que quando você gestar um bebê, ou quantos escolher ter, viva uma experiência diferente da nossa, e eu serei a mulher, se assim permitir, que estará ao seu lado, te dizendo o quanto você é especial.

Te amo filha!
Com carinho, mamãe.

Referências

Comparativos de Métodos

https://m.pharma.bayer.com.br/pt/areas-terapeuticas/saude-de-a-a-z/contracepcao/metodos-contraceptivos/comparativos-metodos/

Indicações reais e fictícias de cesariana

http://estudamelania.blogspot.com/2012/08/indicacoes-reais-e-ficticias-de.html

Episiotomia seletiva ou de rotina no parto vaginal

https://www.cochrane.org/pt/CD000081/episiotomia-seletiva-ou-de-rotina-no-parto-vaginal

Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento

https://www.scielosp.org/scielo.php?pid=S1413-81232005000300019&script=sci_arttext&tlng=es

 

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Uma resposta para “Carta para minha primogênita”

  1. Boa noite!
    Meu nome é Fernando e sou Ginecologista e Obstetra. Tenho 35 anos, com 10 de formado. Realizei minha residência em ginecologia e obstetrícia no Hospital do Mandaqui por 3 anos em São Paulo. Fiz especialização em oncologia ginecológica por 2 anos integralmente e mais 4 anos como complementação. Há 8 anos e meio trabalho diretamente com a minha especialidade de base. Vi e vivenciei muitas situações em que a mulher foi colocada em segundo plano, ou mesmo sua individualidade com seus desejos e sonhos foram ignorados. Entendo isso após observar aí longo desses anos. Porém entendo que a evolução depende da observação e entendimento do que é a melhor trajetória. Isso não se consegue imediatamente. Infelizmente na natureza humana, desde os primórdios, a evolução se dá com a seleção do que é bom em cima do que não é. Há pouco tempo, aproximadamente 10 anos foram publicados varios trabalhos contundentes demonstrando nossos erros com a mulher e sua assistência. A minha especialidade se transformou muito durante o período de minha formação. Mas isso não é exclusivo dessa área. Toda a medicina e a humanidade está evoluindo e se transformando. Leio com pesar suas experiências negativas. Gostaria que pudesse ter um sentimento bom e experiências melhores em momento tão importante. Mas estou escrevendo por entender um ponto muito importante que envolve seus dizeres. Tudo o que ocorreu e ainda ocorre em certos lugares com certos profissionais, não representa o MAL. A grande maioria não faz algo para machucar as pessoas. São fruto de uma formação antiga. De costumes que eram corretos no momento em que foram moldados. Essa mudança não é natural. Gostaria que o seu esforço fosse principalmente para conscientizarás pessoas em entender que já existe evolução, mas não esquecer que ainda existirá um hiato até essas mudanças se tornarem sólidas e generalizadas. Estamos em um momento em que só colocam de um lado as pessoas certas (do ponto de vista de cada um) e do outro as erradas. Apenas aquilo que cada um acredita serve. Escrevo pois gostaria que todo esse relato não fosse para atacar ou acusar um sistema. Escrevo pois gostaria que as ironias não fizessem dessa uma narrativa do bem contra o mal. O dia em que todos respeitarem suas crenças, sem formarem algum culpado, atingiremos uma harmonia.
    Continue com sua luta em acolher e transmitir amor. Pois isso era o que as Doulas que eu conheci no Hospital de minha residência (em sua maioria senhoras acima dos 55 anos chegando até os 80) demonstravam. Elas davam amor, faziam carinho, davam força a todas as pessoas. Nao era só as gestantes, mas aos pais, médicos, enfermeiros, estudantes e todos que estavam lá. Não existia a distinção do certo ou errado. Elas me ensinaram sobre humanização. As práticas médicas estão em constante mudança. Inúmeros estudos vai esclarecer se o que fazemos está certo. Mas o amor ao ser humano representa a verdadeira humanização.

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