O medo da dor do parto e a violência obstétrica

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Muito se fala da dor do parto, alguns falam com convicção que é a pior dor do mundo, que é uma dor equivalente a 20 ossos quebrando ao mesmo tempo, que é a dor da morte. Algumas mulheres que passaram por essa dor dizem que ela era suportável, mas para a maioria a dor do parto é mesmo bastante intensa. Não é incomum nos relatos de parto que elas descrevam uma sensação de quase morte, de terem se permitido morrer para que a criança nascesse.

O médico obstetra francês Michel Odent conta que sente alegria quando as mulheres falam qualquer derivação da palavra morte durante o parto, pois sabe que está muito perto do bebê sair. Ele chama isso de medo fisiológico. Pode parecer sadismo, mas segundo ele, é extremamente positivo que os profissionais de assistência ao parto resistam à tentação de “ajudar” as mulheres nesse estágio final com qualquer intervenção para abreviar o processo.

Quando deixadas em paz, quando simplesmente apoiadas, as mulheres têm no parto uma maravilhosa oportunidade de superar o que antes lhes parecia insuperável. Por isso se diz que o trabalho de parto prepara as mulheres para a maternidade. Depois de passar por esse trabalho, literalmente labour, todos os desafios que se apresentam na criação de um novo ser, qualquer febre, resfriado, doença, se tornam bem mais simples.

A parteira mexicana Naoli Vinaver assim o diz, ela ainda costuma dizer que cada parto é um pacote perfeito e individualizado para preparar aquela mulher que está parindo para ser mãe da criança que está nascendo. Cada filho, cada filha, exigirá um desafio diferente para sua mãe. Talvez por esse motivo, os partos sejam tão variados quanto são variados os seres humanos nesta terra. Não existe um parto igual ao outro, mesmo para uma mesma mulher.

Lembro de conversar com uma senhora quando estava começando a atuar como doula, ao lhe contar do meu trabalho ela prontamente dividiu comigo as suas experiências de maternidade. Já avó, ela me disse com muita naturalidade que havia parido os seus dois filhos e que achava belo o meu trabalho. Quando perguntei o que ela achava da dor, ela simplesmente disse que já não lembrava mais: “É uma coisa de Deus, minha filha, a mulher esquece. Eu lembro que era forte, mas exatamente como é eu já não sei mais.”

Acho verdadeira e muito bonita a maneira como ela entendeu a dor, como algo que escapa à memória, como se o parto, apesar de muito intenso, tivesse sido pensado para não traumatizar as mulheres, para que elas não deixassem de querer ter mais filhos. De fato, eu já vi muitas mulheres que nunca pariram fugindo da dor do parto, enquanto outras que tiveram um parto natural respeitoso estão caminhando para o seu segundo, terceiro, quarto parto domiciliar planejado.

Naoli Vinaver diz que nós mulheres sabemos parir, mas não só isso, ela diz que nós gostamos de parir. As mulheres que tiveram a oportunidade de mergulhar fundo dentro de si mesmas, que sentiram a emoção de ver a vida fluindo através delas, lembram com alegria do nascimento de seus filhos, apesar da dor. Então por que será que temos tantos relatos traumáticos de parto e nascimento? Por que existem tantas mulheres com medo da dor do parto no Brasil?

Medo da dor do parto ou da violência obstétrica? Um breve panorama sobre a assistência ao parto no Brasil

dor do parto
O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli, reinventado por María Pichot (AR).

Gosto de começar contando um pouco do contexto atual da assistência ao parto e ao nascimento no nosso país. Temos a 2ª maior taxa percentual de cesáreas no mundo inteiro, 57% dos nascimentos no Brasil acontecem por cesárea, e no setor privado esse número sobe para 84%, enquanto a OMS recomenda uma proporção de até 15%. E isso não se dá por escolha das gestantes; segundo dado da pesquisa Nascer no Brasil, realizada pela Fiocruz, 70% das mulheres preferem parto normal no início da gestação, mas ao longo do pré-natal são dissuadidas dessa escolha, quando não efetivamente enganadas com alguma causa absurda de cesariana (ver nas referências lista compilada pela médica obstetra Melania Amorim contendo impressionantes 227 motivos falsos já alegados por profissionais de saúde para a cirurgia).

As cesáreas se tornaram um problema de saúde pública no Brasil, as mulheres estão submetidas a mais riscos de mortalidade e de complicações tanto na realização e recuperação da cirurgia, quanto em gestações futuras. Segundo Eleanor Luzes, o medo do parto é nada mais do que o medo do desconhecido, de fato, poucas de nós tem memória celular do que é parir (ou ser parida). Somos de uma geração de mulheres que nasceu de cesáreas e isso tem um grande impacto na nossa percepção sobre o parto.

A situação das cesarianas no Brasil por si só é uma alerta de que algo de errado está acontecendo, mas o problema não se resume a isso. O que estamos buscando não é só parir, mas parir com dignidade. Então o que acontece com as 43% restantes que têm um parto normal? A pesquisa nacional da Fiocruz traz um panorama alarmante: apenas 5% das analisadas passaram por uma experiência de parto natural (entendido como aquele em que não há qualquer intervenção para o nascimento), foram comuns intervenções como litotomia (91,7%), episiotomia (53%), amniotomia (40%), infusão de ocitocina sintética (38%) e manobra de Kristeller (37%), enquanto que, na realidade, a grande maioria das mulheres apenas precisa de alguém para aparar o bebê que nasce.

As intervenções no parto são muito maiores do que o aceitável segundo parâmetros da OMS e do Ministério da Saúde, evidenciando que boa parte dos procedimentos realizadas no corpo das mulheres durante o parto não acontece por uma indicação devida, mas sim por desatualização, pessimismo, pressa, falta de empatia, preconceitos, punição por suposto prazer sexual, desorganização do sistema de saúde, etc. A assistência de saúde ao parto no Brasil é reprodutora de violência obstétrica e adota poucas medidas de conforto para as mulheres assistidas.

A violência obstétrica caracteriza-se não apenas pelo trato desumanizador à mulher, mas também, e muitas vezes exclusivamente, por uma excessiva medicalização e patologização dos processos naturais de parturição. Não raro as mulheres são “bem tratadas” ao mesmo tempo que sofrem intervenções desnecessárias. Saem da maternidade física e emocionalmente aos pedaços, mas conformadas, acreditando que procedimentos proscritos e danosos como a manobra de Kristeller (quando se empurra a barriga da mulher durante a contração) foram necessários para o nascimento de seus filhos.

Uma série de violências se tornou natural, é “normal” ter a/o acompanhante barrada/o, ficar sem comer ou beber, ter a dilatação forçada durante o toque, ter o períneo cortado, ter a barriga empurrada. Por trás de todas as histórias horríveis de parto que circulam no imaginário popular, quase sempre se encontra uma severa violação de direitos por parte do sistema obstétrico que assistiu a mulher, mas quem acaba levando a má fama é o parto normal. Ou seja, temos pouca memória celular e social do que é o parto normal e o pouco que temos não é nada perto do agradável.

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A Origem do Mundo, de Gustave Courbet, reinventada por María Pichot (AR).

Rota de fuga para uma experiência de parto positiva

O parto normal pode ser um evento transformador, mas nos últimos anos vem sendo manchado por uma cultura de cesáreas e violência obstétrica, que não respeita a fisiologia natural do parto, nem a autonomia das mulheres. Somos uma geração que desconhece o parto em seu estado mais natural e transformador, ao contrário, conhecemos os horrores de uma assistência intervencionista e que muito pouco sabe sobre como partejar as mulheres.

Esse artigo se propõe a dar uma direção para quem deseja abandonar os medos e inseguranças aprendidos nesse sistema e andar por um caminho mais consciente e prazeroso. O parto normal humanizado não é a saída mais óbvia na atual conjuntura, para parir com dignidade não basta só querer, é preciso encontrar a rota de fuga. Abaixo vão algumas sugestões.

-Estude!

Conhecimento é a chave. Exorcize seus fantasmas. Como funciona a fisiologia do parto? Quais as complicações que mais te assustam? Quais histórias pessoais ou familiares te amedrontam? Quais são as indicações reais e falsas de cesárea? Quais os protocolos de conduta mais afinados com as evidências científicas de assistência ao parto? Como lidar com a dor de maneira não-farmacológica? Quais são os seus direitos como parturiente? Buscar fontes seguras de conhecimento é um passo muito importante para sair de um modelo violento e ser a protagonista do seu parto.

-Participe de grupos virtuais e presenciais de apoio ao parto normal

Não esteja sozinha nadando contra a corrente, pode ser desgastante. Participar de encontros presenciais de apoio ao parto normal organizados por doulas ou enfermeiras obstétricas é essencial para conhecer a realidade da sua cidade, obter conhecimento sobre temas relativos ao parto e principalmente trocar experiências com outras gestantes e casais que estão na mesma busca ou que já passaram por essa fase. Também existem alguns grupos virtuais bem administrados como o ‘Parto Natural’ e o ‘Cesárea? Não, obrigada’, onde você pode pesquisar alternativas, ler experiências de mulheres em situações semelhantes à sua e pedir indicações na sua região. Rede de apoio conta muito!

-Tenha uma doula para chamar de sua

Nisso eu sou suspeita para falar, mas seria impossível deixar de recomendar o nosso trabalho de apoio informacional, físico e emocional durante a gestação, parto e puerpério. A doula não pode interferir nos procedimentos da assistência durante o parto, mas certamente, durante a gestação, te ajudará a encontrar a sua voz para esse momento, indicando os caminhos mais seguros para uma assistência respeitosa.

Evidências científicas apontam que o suporte contínuo de uma doula externa à equipe de saúde durante o parto aumenta a incidência de parto vaginal espontâneo, com diminuição do risco de cesárea desnecessária e parto instrumental (com uso fórceps ou vácuo extrator), reduz a duração de trabalho de parto e os pedidos de analgesia, além de aumentar os índices de Apgar (nota que os bebês recebem ao nascer, de acordo com a sua saúde) e a satisfação das mulheres com o parto. Muitos estados e cidades contam com leis que garantem o direito da mulher de levar a sua doula além de seu/sua acompanhante.

-Elabore um Plano de Parto

O Plano de Parto é um documento reconhecido pela OMS e Ministério da Saúde através do qual a gestante poderá expressar as suas escolhas em relação aos procedimentos e intervenções a serem realizadas no seu corpo durante o parto. Ele pode ser apresentado à instituição hospitalar e à equipe responsável pela assistência antes do parto ou mesmo no momento da internação e deverá ser anexado ao prontuário da mulher. A OMS considera que uma assistência respeitosa ao parto, na qual as mulheres participam na tomada de decisões sobre intervenções médicas, constitui uma importante estratégia para redução da mortalidade materna e infantil com base nos direitos humanos. Apesar de nem sempre familiar às instituições de saúde, o Plano de Parto pode ser um importante instrumento de proteção contra violência violência obstétrica e respeito à autonomia da mulher.

-Fuja de contextos violentos

Mesmo tendo estudado bastante, estando firme do que acha melhor para você, com acompanhante disposto/disposta a fazer valer suas decisões, com doula e plano de parto, procure evitar contextos que você sabe serem violentos e inseguros. Não ache que não pode acontecer com você. Dentro de suas possibilidades, faça a sua parte e procure a melhor alternativa ao seu alcance. Durante o parto a mulher precisa estar à vontade e tranquila para que o coquetel de hormônios responsáveis pela evolução do parto seja secretado na corrente sanguínea sem embargos. O momento de parir não é hora de lutar por assistência digna, é hora de colocar as preocupações de lado e deixar a mulher instintiva aflorar.

REFERÊNCIAS

Parto Ativo: Guia Prático para o Parto Natural  – Janet Balaskas, 2015.

Continuous support for women during childbirth – Biblioteca Cochrane. Disponível em: http://www.cochrane.org/CD003766/PREG_continuous-support-women-during-childbirth

Indicações reais e fictícias de cesárea. ESTUDA, MELANIA, ESTUDA! – Melania Amorim. Disponível em: http://estudamelania.blogspot.com/2012/08/indicacoes-reais-e-ficticias-de.html

Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento – Fiocruz. Disponível em: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/arquivos/anexos/nascerweb.pdf

UNICEF alerta para elevado número de cesarianas no Brasil – Nações Unidas no Brasil. Disponível em: https://nacoesunidas.org/unicef-alerta-para-elevado-numero-de-cesarianas-no-brasil/

Vídeos

Dor do Parto (depoimento de 12 mulheres que pariram naturalmente) – Instinto Fotografia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aiISlvddgPM

Nascer no Brasil: Parto, da violência obstétrica às boas práticas – Fiocruz. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q9G5uyRKsyk&t=13s

Você tem medo do parto? – Eleanor Luzes. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UNL7krlih8Y

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